Ainda que sumariamente, torna-se impossível analisar a dicotomia: via heróica, via titânica sem se abordar outra dicotomia que lhe é intrínseca: determinismo e livre arbítrio. É também indispensável incluir, na definição da natureza heróica, o princípio metafisico da Arte Real, como é imperioso recorrer à decadência do pensamento ocidental para compreender a moderna eclosão de doutrinas de acção titânica. Estes são temas decisivos para quem se proponha actuar canonicamente sobre o tecido social.

Acerca da Arte Real

Metafisicamente, designa-se por Arte Real a acção exercida sobre a natureza em concordância com princípios transcendentes, de origem sagrada, constantes do código da Criação. Tal doutrina congrega, iniciaticamente, os agentes executantes da Arte, distribuídos pelas várias modalidades, sejam as oficinais ou as cavaleirescas. As primeiras agem sobre a matéria ou sobre a Terra, em ordem à vontade do Céu; as segundas agem sobre os povos, em ordem à paz divina.

De acordo com a Tradição espiritual, considera-se que toda a acção que não tenha sustentação no mandato divino e nas regras respeitantes ao próprio processo iniciático, alcança efeitos duvidosos e carece de legitimidade.

No âmbito da Arte Real, a acção empreendida pelo marceneiro, pelo pedreiro, pelo vidraceiro, pelo ferreiro, pelo arquitecto, etc; pelo cavaleiro ou pelo príncipe, tem um sentido reflexo. Porque todo o acto se reflecte em quem age, a obra canonicamente perfeita corresponde à perfeição espiritual de quem a executa. O aperfeiçoamento constante de uma técnica artesanal, ou do exercício da autoridade, corresponde ao constante aperfeiçoamento espiritual de quem actue.

Simbolicamente, o agente da Arte Real situa-se entre o Céu e a Terra, entre Deus e a natureza. Recebe os influxos espirituais divinos e transmite-os à matéria e à vida dos homens. Tal é a sua natureza e a sua função.

Via heróica e Via titânica

O que caracteriza fundamentalmente a via heróica é o comprometimento sobre-humano em defender a “vontade” divina e proteger os povos da intervenção titânica. No limite, o herói sacrifica a própria vida no desempenho da sua função protectora, tal como o mártir faz na defesa da sua integridade espiritual. Se a designação de martírio se funda semanticamente em Marte, também a noção de herói se aparenta com o princípio marcial. O mártir, pela coragem e irredutibilidade; o herói, pelo combate sob mandato sagrado.

Nas mais variadas e antigas culturas o herói foi sempre entendido como aquele que transcende a condição humana, pela sua ligação, dir-se-ia umbilical à divindade, alguém cuja natureza é semidivina.

Metafisicamente, o herói evoca e representa um princípio de acção centrípeta, que aglomera os elementos caoticamente dispersos, impondo a ordem ao caos. Trata-se de um elemento primordial, ou seja, está contido no conjunto inicial das possibilidades que suscitam um ciclo de manifestação.

De idêntico modo, a via titânica constitui um elemento primordial, repercutido ao longo dos tempos, a exemplo dos mitos: da Torre de Babel, de Prometeu e de outros, referindo a tomada do Céu de assalto. Questionando os fundamentos da Criação, o titanismo moderno recusa a realidade, substituindo-a por utopias, cujo carácter irreal precipita os mais variados tipos de convulsões. Cronologicamente, é possível assinalar-lhe uma deriva histórica, verificada no seio da Civilização Ocidental, no período em que esta inicia a sua decadência enquanto estrutura civilizacional

Sendo o titanismo uma causa, a deriva histórica acima referida situa-se no domínio dos efeitos. Eles mantiveram-se de forma residual até ao momento em que se começou a avolumar o sentimento mais característico do orgulho luciferino: libertar-se da tutela divina recusando o serviço à Glória de Deus.

O que caracteriza fundamentalmente a via heróica é o comprometimento sobre-humano em defender a “vontade” divina e proteger os povos da intervenção titânica. No limite, o herói sacrifica a própria vida no desempenho da sua função protectora, tal como o mártir faz na defesa da sua integridade espiritual. Se a designação de martírio se funda semanticamente em Marte, também a noção de herói se aparenta com o princípio marcial. O mártir, pela coragem e irredutibilidade; o herói, pelo combate sob mandato sagrado.

A primeira etapa assinalável dessa recusa processa-se por substituição. O Homem passa a ser “a medida de todas as coisas”, frase repescada do sofismo combatido por Sócrates, que ilustra lapidarmente o propósito do humanismo como afirmação de uma centralidade humana que usurpa ao sagrado o ponto chave de toda a realidade. Sequencialmente, o racionalismo reafirma a razão humana como intérprete privilegiada da realidade, a doutrina “das luzes” rectifica o ancestral primado do espiritual sobre o material, considerando que a única iluminação capaz de alargar a consciência é a “luz” racional, o positivismo proclama a Religião da Humanidade e o materialismo derriba qualquer concepção espiritual. Tal é, em curtas palavras, o desenvolvimento da acção titânica no Ocidente moderno, na tentativa recorrente de se opor à “vontade” de Deus.

Metafisicamente, o titanismo corresponde a um princípio centrifugo de fragmentação. Enquanto agente activo, o titã representa a possibilidade de rompimento da ordem natural das coisas, como modo inaugural de um tempo que preludia o fim do ciclo.

Determinismo e Livre Arbítrio

De acordo com a lei das analogias é legítimo registar uma correspondência entre determinismo e via heróica e entre livre arbítrio e via titânica.

Do ponto de vista determinístico, todas as possibilidades que, no seu conjunto compõem um ciclo, estão estabelecidas desde a origem, nos mais ínfimos pormenores. Sendo uma realidade em que o tempo se anula, passado, presente e futuro coabitam numa mesma dimensão rigorosamente intemporal. Daí que o futuro já esteja determinado, em termos metafísicos e proféticos, embora temporalmente ainda não tenha acontecido. Tudo o que foi, é e será está estabelecido e a realidade manifestada, em que se inclui o Homem, limita-se a protagonizar os eventos determinados primordialmente, independentemente de qualquer vontade, excepto a “vontade” divina que está na origem de toda a determinação.

Aqui, o conceito de vontade humana é substituído pela noção de que todo o acto se deve a estímulos psíquicos originados fora da manifestação e que, vulgarmente, são entendidos como a “vontade” de Deus. Neste aspecto, é sugestivo o verso inaugural do Canto Sexto da Mensagem, na dedicatória ao Infante, quando Pessoa diz: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.” Tais estímulos, que impulsionam toda a movimentação, destinam-se a fazer cumprir as determinações contidas nas possibilidades de um ciclo, manifestando-as ao mais ínfimo pormenor. Religiosamente, a cristandade resume esta percepção na fórmula “se Deus quiser” que corresponde literalmente ao insha’ Allah islâmico.

Como é evidente, esta submissão à vontade do Céu, sendo comum entre crentes, encontra paralelo na via heróica que lhe dá a componente superlativamente activa, produzindo actos da maior relevância.

Naturalmente, o conceito de livre arbítrio, sobrepondo a vontade humana à divina, identifica-se com a natureza titânica. Com efeito, a ideia de que os actos humanos são determinados pela capacidade de escolha dos indivíduos, exclui a relação harmónica entre Deus e o Homem, fundada na diferença de natureza entre Criador e criatura.

Por vezes depara-se com a objecção que interroga: se, como pretende a doutrina determinista, todos os acontecimentos que ocorrem na realidade manifestada são decorrentes da vontade de Deus, como podem ser incluídos, nesse conjunto, factos que contrariam a “vontade” divina substituindo-a pela vontade humana? Teologicamente, o cristianismo sugere que Deus teria concedido ao Homem capacidade de decisão e escolha, seja para se submeter à sua “vontade”, seja para a substituir pela vontade individual. Porém, na latitude de tais decisões, nada anula o princípio de que tudo depende da “vontade” de Deus, inclusive suscitar e abrigar a revolta humana contra a sua divindade.

Na verdade, sem esse elemento dissolvente, o ciclo não se encaminharia para a própria extinção, cumprindo uma conformidade universal que rege a origem e a extinção de tudo, seja a vida e a morte de um indivíduo, seja o princípio e o fim de um ciclo ou de uma civilização. O corte total e definitivo entre o Homem e Deus corresponde à cessação da manifestação humana.

A natureza escatológica do titanismo está relacionada com o facto de a realidade ser inviolável, e “os tempos” terem obrigatoriamente de se cumprir, mesmo quando manifestem um processo de aniquilação: “É impossível que não venham escândalos, mas ai daquele por quem vierem”. – Lucas 17.

Conclusão

Face ao que acima se considerou, será lícito que se pergunte: Se tanto a via heróica como a via titânica são provenientes da “vontade” de Deus, que razão há para se exaltar uma, a heróica, e depreciar a outra, a titânica? Na verdade, fazendo abstracção de conceitos de valor, que frequentemente são armadilhas postas ao conhecimento, ambas as vias têm a sua razão de ser e a sua função; uma ordenadora e vitalista, outra caótica e escatológica.

Esta ambiguidade resolve-se através da diferenciação de natureza. Existe quem tenha vocação para a via heróica e quem a tenha para a via titânica. Aliás, o mundo moderno caracteriza-se justamente pelo embate entre os pressupostos destas duas naturezas e cada vez mais assim será, porque crescem quantitativamente os agentes do titanismo, o que é coerente com a actual fase cíclica. A compensação que equilibre este crescendo só poderá obter-se através da qualidade, único antídoto contra a quantificação da realidade.

Embora o escândalo tenha que vir, nada pode alterar a natureza daqueles que são contrários ao escândalo e ao caos. Cabe-lhes manter lúcida a consciência espiritual. O seu combate é sagrado porque cumpre a “vontade” divina e manifesta a natureza heróica. A única exigência que lhes pode ser feita é que representem a qualidade verdadeiramente aristocrática, que é a chave para o domínio da natureza e para a boa condução dos povos.

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