O autor preferiu o Acordo Ortográfico de 1990.
Introdução
Após a vitória catastrófica do igualitarismo na sociedade portuguesa, uma das maiores perdas foi o sentido de elite no domínio das mais importantes áreas do saber e fazer com real impacto social. Acrescentando à própria derrota conceptual do elitismo, embora não necessariamente prática, este desenvolveu uma conotação negativa por culpa das próprias elites ao longo da história recente, seja a nível nacional ou ocidental.
Há poucos dias falava com um companheiro, experiente na sua área de trabalho sobre o estado da mão de obra disponível no mercado, mais concretamente na sua região que manterei confidencial. Os relatos arrepiaram-me, ao ponto de termos jovens trabalhadores que se “formaram” num setor relacionado com trabalho manual, interligado a noções básicas de matemática que qualquer aluno do 6º ano deveria saber, mas cuja inabilidade para calcular uma simples área retangular falava mais alto.
Este episódio semeou em mim um debate sobre o atual estado do ensino, que após Abril quis ser tão igual, mas só nos ofereceu igualdade na ingerência. Esse Abril tomou para si a responsabilidade de regular as portas das atividades que guiam a sociedade e abriu-as a quem se deveria especializar no que para a sociedade pode produzir; colocou o superdotado e o incapaz na mesma lição, desvalorizou o ensino profissional e o trabalho manual em prol de uma intelectualidade artificial, arrastando-a como uma âncora para o fundo da sua notoriedade e boa representação.
Todos temos um propósito
A noção de que todos temos um propósito social é positiva e deve ser difundida como oposição às crenças hodiernas de que tudo não passa de matéria e de que esta experiência intersubjetiva, a que damos o nome de “vida”, realmente tem um valor pelo qual devemos nos esforçar e lutar para sentirmos uma realização ao fazer o bem por nós e pela nossa pátria.
Infelizmente, esta noção foi corrompida. A versão nobre e original de que “todos temos um propósito” foi substituída pela ideia de que “todos temos direito àquele posto”, numa nova versão de um propósito materialista.
O posto é social. Trata-se de um lugar e condição que em muitos casos é alimentado por modelos sociais que incentivam as massas a prosseguir um determinado caminho, não porque é o mais ajustado para o indivíduo ou porque é o caminho necessário para a nação, mas para satisfazer esta novela moderna em que o ensino tem uma dinâmica de maior socialização e fruição de experiências do que a aprendizagem de conteúdos que atribuem ferramentas necessárias ao indivíduo para ter as chances de concorrer por um lugar de prestígio numa área do saber complexa e de grande impacto social (inclusive civilizacional).
O caso dos EUA é gritante, onde uma geração inteira se endivida pela experiência socialmente percecionada como excitante de aderir ao privilégio histórico de participar numa rede de sociabilização onde o conteúdo se torna secundário.
Assistimos a esse fenómeno na desvalorização da licenciatura que contaminará eventualmente o mestrado, ou na incapacidade de produzir especialistas em áreas que não contactam diretamente com as ocupações essenciais para a elevação política e cultural da sociedade.
É normal que se assuma que o sistema capitalista americano necessite do consumismo expendioso e culturalmente normalizado. Já no caso português, onde predomina uma intervenção estatal, existe um maior potencial de adaptabilidade se o Estado assumir o ensino e a academia como um investimento do qual terá retorno, em vez de ser um meio para alimentar creches em mercados de nichos e pouco valor acrescentado, cuja dispensa enérgica da comunidade é movida em torno de um canudo sagrado, cuja utilidade se revela cada vez menos essencial na prossecução de atividades produtivas futuras.
A ida direta para a formação profissional, vista erroneamente como inferior pela pobreza de capital fixo e infraestrutural da qual infelizmente é privada por falta de priorização, pouparia tempo e recursos económicos ao Estado, e para a própria direita seria um meio de esvaziamento geracional no contacto entre cidadão e academia que incute ideais importados e indesejados.
Resumindo, com um exemplo aleatório, não podemos ser todos diplomatas. Quem estaria no terreno a criar valor acrescentado para a nação? Quem estaria a defender as nossas fronteiras? Quem produziria os livros, filmes e músicas que moldam a nossa identidade nacional, que o próprio diplomata procuraria defender no seu trabalho em contactos com outros agentes externos à pátria?
Chegámos ao ponto onde a mera presença numa arena social como a academia se alargou para alimentar o desejo de presença numa instituição outrora de renome, dos melhores dos melhores, mas que hoje é percecionada por uma fatia crescente como o espaço ideal para gasto de energias em sociabilização, e não na moldura de um indivíduo que queira quebrar barreiras em prol de motivações e ideais maiores do que ele próprio, ou seja, que acrescentem um valor por uma causa.
Imaginem que na Idade Média o serviço especializado de mentoria prestado aos príncipes herdeiros se alargava em nome da universalização igualitária? Não só o príncipe seria prejudicado, tal como o coletivo que viria a governar, pois a especialização deixaria de ser especial, como estaríamos a desperdiçar energia e recursos na formação de indivíduos que nunca iriam servir uma posição com impacto social que por definição é exclusiva, como o caso do rei.
Esse é o atual panorama com que nos encontramos, e defendo que é preciso mudá-lo.
Escada social e corpo nacional
Mas, afinal não foi para isso que se destruíram as sociedades com elevadores sociais limitados? Na verdade, não foram extintas. Continuamos a ter uma predominância dinástica nos meios políticos anglo-saxónicos, assim como em instituições afetas ao sistema financeiro, que per si influenciam os restantes agentes privados com impacto social a uma escala global. Se não pretendemos uma sociedade de fraco elevador social qualitativo, torna-se obrigatória uma reflexão sobre a fraca triagem que o sistema efetua para escolher o indivíduo certo e colocá-lo no posto correto.
A própria noção de “posto correto” mexe com os apologistas de uma sociedade de constantes relativismos liberais e negacionista dos órgãos que constituem o corpo nacional, como se fosse um ser vivo. Nesse ser, no caso de Portugal, o braço esquerdo não pode ser mais importante do que a perna direita e achar-se como tal. Sem uma coordenação existe um desequilíbrio, e a nação, o ser coletivo, não caminha eficientemente rumo ao seu objetivo.
No campo das elites que ocupam o análogo “cérebro”, acontece o mesmo. O atual cérebro devia inspecionar a sua atual composição e perceber o porquê de algumas células se dirigirem para os tecidos e consequentes órgãos errados. Nesta analogia, o cérebro foi embebedado ao longo dos períodos revolucionários e passou a acreditar na noção de que a matéria não deve ser domada e que deve movimentar-se por onde quiser, mesmo que isso implique a total descoordenação do todo.
O cérebro tem de ser limpo e começar a trabalhar coerentemente. Precisa de fazer uma triagem entre a matéria capaz de ir para o cérebro e a matéria que deve ir para os braços ou para as pernas. Essa triagem existe em modelos educacionais como o alemão, onde desde cedo se faz uma diferenciação entre quem deve prosseguir um modelo tecnológico ou modelo científico.
Para tal, o estigma contra o ensino profissional tem de ser combatido; o vício de deixar passar alunos sem competências tem de ser combatido; o medo de querer distinguir o que não é igual tem de ser combatido; a indecisão em separar a água e o azeite tem de ser ultrapassada, mas só quando o cérebro compreender que sem o estômago o coração de pouco vale, ou que sem a coluna de pouco interessam os pulmões. Até lá seremos incapazes de cumprir o potencial que nos espera.
Conclusão
A nova aristocracia não pode ser sistemicamente corrompida. Uma aristocracia que não se percecione como aristocrática dificilmente agirá consciente do peso que carrega nas suas costas. É como um leão que se perdeu das suas origens e foi adotado por um grupo de gazelas. Sabemos que não deveria estar naquele estado, sabemos que não é aquele o seu propósito e sabemos que idealmente seria diferente, mesmo que as gazelas fiquem chateadas por dizemos que o suposto seria o leão agir hostilmente para com elas.
Sou da opinião de que as atuais aristocracias que detêm poder social, burocrático e económico, agem inconscientemente. Podem eventualmente usar o fato e gravata, mas contentam-se em seguir doutrinas internacionais que o pico da pirâmide social lhes impôs, então não serão uma aristocracia digna de o ser na essência, não passando de um conjunto de indivíduos com diplomas, boa imagem e fracos feitos que serão esquecidos na história.
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