O autor preferiu o Acordo Ortográfico de 1990.
Wandering between two worlds, one dead,
The other powerless to be born,
With nowhere yet to rest my head,
Like these, on earth I wait forlorn.
Their faith, my tears, the world deride—
I come to shed them at their side.”
— Stanzas from the Grand Chartreuse, 1855, Mathew Arnold
Menos de um século e meio volvido de The Grand Chartreuse colocada em epígrafe, um sentimento semelhante – subtraída a melancolia – parecia dominar o cientista português Boaventura de Sousa Santos n’Um Discurso Sobre as Ciências, publicado pela primeira vez em 1987 e escrito em 1985.
Estamos a quinze anos do final do século XX. Vivemos num tempo atónito que ao debruçar-se sobre si próprio descobre que os seus pés são um cruzamento de sombras, sombras que vêm do passado que ora pensamos já não sermos, ora pensamos não termos ainda deixado de ser, sombras que vêm do futuro que ora pensamos já sermos, ora pensamos nunca virmos a ser. (…) E de tal modo é assim que é possível dizer que em termos científicos vivemos ainda no século XIX e que o século XX ainda não começou, nem talvez comece antes de terminar. E se, em vez de no passado centramos o nosso olhar no futuro (…) Por um lado, as potencialidades da tradução tecnológica dos conhecimentos acumulados fazem-nos crer no limiar de uma sociedade de comunicação e interativa libertada das carências e inseguranças que ainda hoje compõe os dias de muitos de nós: o século XXI a começar antes de começar. Por outro lado, uma reflexão cada vez mais aprofundada sobre os limites do rigor científico combinada com os perigos cada vez mais verosímeis da catástrofe ecológica ou da guerra nuclear fazem-nos temer que o século XXI termine antes de começar.
Sousa Santos, 2010, p. 5-6.
Esta é a reflexão com que Boaventura abre o seu livro: as inquietações de um período de transição. Transição esta que é um presente incerto na sua rutura com o passado e no compromisso com um futuro. De facto, e como o próprio autor anuncia logo no principiar do seu escrito, Um Discurso sobre as Ciências propõe fazer uma caraterização e genealogia do paradigma científico então dominante, o positivismo galilaico-cartesiano-newtoniano do século XIX – passado o anacronismo – e a sua crise e transição para uma nova matriz disciplinar, ou inter e transdisciplinar, pós-moderna, descrita em jeito de vislumbre. Este novo paradigma seria, numa das mais sugestivas previsões do autor, “relativamente imetódico” (ibidem, p. 48) e, entre outras coisas, especularia “se é possível, por exemplo, fazer a análise filológica de um traçado urbano, entrevistar um pássaro ou fazer observação participante entre computadores” (ibidem, p.49).
Contudo, passados quase quarenta anos da escrita do livro, e estando já a terminar o primeiro quartel do século XXI, aquilo que cabe ao leitor de 2024, perante uma tão quimérica previsão de um futuro que não se concretizou é, precisamente, interrogar-se quanto ao porquê. Porque é que aquilo que em 1985 era anunciado como o futuro próximo da ciência é, ainda hoje, lido como a mais revolucionária das utopias cognitivas?
Na primeira parte do seu livro, Boaventura de Sousa Santos trata o paradigma científico moderno ainda dominante. Fazendo remontar a sua origem a Copérnico, Galileu, Bacon e Descartes, o autor explicita que a ciência moderna não se erigiu sobre uma maior importância dada ao empírico, ou real/natural, e à sua observação. Muito pelo contrário, este “modelo totalitário, na medida em que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas” (ibidem, p. 10), que é também revolucionário, pois surge de uma rutura com tudo o preexistente, lutando contra qualquer dogmatismo e autoridade, carateriza-se, antes pela desconfiança sistemática nas experiências sensoriais, que devem ser sempre submetidas a uma nova forma de pensar traduzida pelo incremento da teorização prévia, que, de acordo com Francis Bacon no Novum Organum, dá certeza à experiência ordenada.
Como eximiamente ilustra a gnosiologia cartesiana, este novo cientista é um sujeito dotado de nada mais do que a sua consciência. Duvida da experiência e da autoridade e parte de uma tábua rasa para a construção de um edifício do saber sobre a matéria, que lhe é completamente exterior e deve ser segmentada em unidades estanques para mais tarde ser quantificada – pois conhecer é quantificar – com o auxílio da matemática, que “fornece à ciência moderna não só o instrumento privilegiado de análise, como também a lógica de investigação, como ainda o modelo de representação da própria estrutura da matéria.” (ibidem, p.14). Isto torna a natureza e o universo n’algo puramente estanque e passível de ser segmentado para proporcionar medições cada vez mais precisas, do mesmo modo que a própria ciência se vai segmentando em áreas igualmente estanques e de fronteiras policiadas, em busca de um maior conhecimento das leis gerais e imutáveis, assentes no princípio aristotélico da causa formal, que regulam o mundo natural, cujo controlo é almejado. Apenas este modelo de ordem e estabilidade é a precondição de transformação tecnológica do real.
A natureza era vista como algo acabado, puramente quantificável e mensurável e regido pela causalidade formal, e como algo que, com o recurso da matemática, poderia ser completamente formalizado, previsto e estudado por sujeitos de conhecimento dela totalmente separados.
Dado que somente a este modelo era conferida a racionalidade científica e todas as restantes formas de conhecimento – desde a filosofia à filologia e à religião – eram vistas como indignas de qualquer crédito, não tardaram, no auge do otimismo positivista para com a ciência moderna, a ser criadas as ciências sociais. Estas últimas, sempre votadas a uma situação de precariedade, importavam o modelo de racionalidade das ciências naturais e procuravam aplicá-lo às realidades humanas. O insucesso de áreas como a sociologia, a psicologia, ou a antropologia, quando comparadas com as ciências naturais estava no facto de aquelas estarem sujeitas a um maior grau de relatividade e contingência; mais árdua separação entre sujeito e objeto; e não serem capazes de passar da fase pré-paradigmática, i. e., a validade dos pressupostos operativos nunca era verdadeiramente aferida, perpetuando-se sempre questões de natureza mais filosófica e essencialista e menos técnica e descritiva.
Contudo, quando as ciências sociais, ou do espírito, começaram a revalorizar a particularidade dos antigos estudos humanísticos e a perceber que exigiam um modelo epistémico e de racionalidade distinto do das ciências naturais, o paradigma que até então as dominava e fazia progredir desmesuradamente estas últimas começou a ruir.
De facto, foi o próprio avanço astronómico da ciência e a crescente reflexão acerca da mesma que fez com que o paradigma reinante fosse posto em causa. As medições de Einstein da velocidade e da simultaneidade mostraram que o tempo e o espaço não são absolutos, tal como não há simultaneidade absoluta, evidenciando como as medições da física e da geometria assentavam em medições locais e contingentes. Com a mecânica quântica, Heisenberg e Niels Bohr revolucionaram a microfísica, mostrando que não é possível medir um objeto sem interferir nele e que as partículas se movimentam constantemente de maneira imprevisível e caótica. Ou seja, a separação sujeito-objeto da ciência moderna e as crenças numa regularidade estanque do universo, passível de ser medido, quantificado e segmentado ordeiramente e com leis gerais preditivas, deixaram de fazer sentido. Ademais, a demonstração dos teoremas de Kurt Gödel de que é impossível encontrar dentro de um sistema formal a prova da sua consistência, veio, outrossim, pôr em questão a formalização matemática.
A acompanhar a desfundamentação dos grandes pilares do modelo de racionalidade da ciência moderna, veio o incremento e o refinamento da atividade epistemológica por parte dos cientistas, filósofos e historiadores da ciência. Neste contexto surge toda uma panóplia de teorias físicas, químicas e da biologia que cada vez começam a ver mais os objetos naturais como muito semelhantes aos objetos humanos, e rapidamente também se procede ao raciocínio inverso de ver o homem novamente como parte da natureza e não como um mero sujeito analítico de uma materialidade formalizável. Conceitos antes somente aplicados a seres vivos, como metabolismo, são agora aplicados a moléculas e átomos e mesmo um pan-psiquismo leibniziano ganha forma quando se fala de consciência e outras especificidades humanas no universo natural. Há até quem postule um regresso de Deus à ciência como uma espécie de grande consciência panteísta e motriz.
É neste contexto que Boaventura, na segunda parte do seu livro dedicada ao paradigma emergente, nos fala de um panorama científico em que as metodologias, teorias e epistemologias são migratórias e podem surgir numa determinada disciplina e imediatamente aumentar o conhecimento que se tem numa outra. Na sua primeira proposta preditiva, de que todo o conhecimento científico-natural é científico-social, não só se reclama uma não distinção entre as objetualidades social-humana e natural, como também se fala da reabilitação dos antigos estudos humanísticos, como a filosofia e os estudos literários, e da sua inserção e coabitação plena com áreas como a física e a química, que estão agora também preocupadas com a compreensão e não manipulação do mundo, bem como com o esbatimento entre sujeito e objeto. Na sua segunda sentença, de que todo o conhecimento é local e total, a migração de teorias e metodologias científicas é reafirmada e o fim da hipersespecialização em que as ciências se encontram e a consciencialização para com os efeitos nefastos da mesma são previstos. Querendo isto dizer, por exemplo, que “o direito, que reduziu a complexidade da vida jurídica à secura da dogmática, redescobre o mundo filosófico e sociológico em busca da prudência perdida” (ibidem, p.46).
Por fim, o autor, que menciona que “a ciência moderna não é a única explicação possível da realidade e não há sequer razão científica para a considerar melhor que as explicações alternativas da metafísica, da astrologia, da religião, da arte, ou da poesia” (ibidem, p.52), anuncia que todo o conhecimento é autoconhecimento, e que, anulada a distinção entre sujeito e objeto, o homem se conhece conhecendo e que a produção científica vindoura “assume-se como próxima da criação literária ou artística” (ibidem, p. 54); e que todo o conhecimento científico visa constituir-se em senso comum. “A ciência pós-moderna sabe que nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma, racional; só a configuração de todas elas é racional (…) o conhecimento científico pós-moderno só se realiza enquanto tal na medida em que se converte em senso comum.” (ibidem, p.55-57).
Posto tudo isto, e volvidos 39 anos desde que estas sortes foram deitadas, é caso para inquirir: para onde terá ido tudo isto? Porque não terá o século XIX ainda terminado aquando do quase início do segundo quartel do século XXI?
Boaventura de Sousa Santos escreve-nos que o estádio de reflexão paradigmática – uma das causas apontadas como responsáveis pelo “atraso” das ciências humanas – era um dos fatores que, neste momento, mais fazia avançar a ciência para a pós-modernidade. Contudo, não terá a prática científica ficado no século XIX, ao passo que a sua reflexão epistemológica avança sozinha e descalça pelo século XX em direção ao XXI?
A (re)união das ciências continua por se cumprir, bem como o preenchimento do fosso entre ciência e senso comum. Se as ciências sociais e humanas continuam a viver num ghetto cada vez mais marginalizado e invadido pelo positivismo da ciência moderna que eleva acriticamente um disfarce de relativismo e polifonia monolítica a atualização científica, as ciências naturais, à medida que, lentamente, se vão tornando mais reflexivas, entram num processo igualmente lento de marginalização, vindo galopantemente a ser substituídas pelas engenharias, onde o estádio de reflexão epistemológica é inexistente.
Como escreveu Habermas, no ano de 1965, em “Conhecimento e Interesse”, um capítulo de Técnica e Ciência como “Ideologia”: “A honra das ciências consiste, pois, em aplicar infalivelmente os seus métodos sem refletir acerca do interesse que guia o conhecimento.” (p.145).
De facto, Boaventura no seu Discurso aponta razões não só teóricas, mas também sociais para a crise do paradigma da ciência moderna. Após dissertar sobre a não autonomia da ciência e a sua subjugação aos interesses económicos, políticos e militares durante o século XX quer pelos regimes capitalistas liberais, quer pelo bloco comunista, e subsequente impositividade e circunscrição da prática científica, bem como a maior consciência, por parte dos cientistas, de que a ciência poderia ser usada para fins devastadores, como Hiroshima e Nagazaki, Boaventura aponta estes fatores como mudanças sociais que clamavam por uma nova forma de ciência. Ademais, o autor também deixara bem claro no início que o modelo científico moderno, com a sua finalidade exploradora, controladora e transformativa do universo e seus recursos, vingou também por ser aquela que mais convinha à classe ascendente da burguesia.
Após uma leitura de Um Discurso sobre as Ciências em 2024, a interrogação imediata seria: o que é que correu mal? Todavia o próprio livro explica o fracasso das suas previsões: a reunião de condições teóricas, mas a falta de condições sociais provocou o desfasamento entre a prática científica de um mundo que está morto e a reflexão epistemológica de um outro que não tem força para nascer.
Bibliografia:
Habermas, J. (1968). “Conhecimento e interesse” in Técnica e ciência como “ideologia”. Edições 70;
Sousa Santos, B. (2010). Um discurso sobre as ciências. (16ª ed.). Edições Afrontamento.
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