Na língua portuguesa, bem como na generalidade das línguas europeias, não muitas vezes se invoca a tradição, muito embora o seu nome seja ocasionalmente referido para deplorar a sua presença. Contudo, neste momento de ocaso – sempre tão propício à reflexão existencial – da civilização europeia, como poderemos aferir a sua Tradição? Parafraseando Maria Zambrano em A Agonia da Europa, ao vermos todo um edifício ruir, ficamos com a melancolia de um sábio ancião grego, que, num momento de derrocada da Hélade, vê todas as suas particularidades como um uno moribundo. Tal é a imagem que o europeu do século XXI contempla e, neste momento final, para conservar num novo mosteiro beneditino, ou para que outros mais tarde o encontrem numa escavação arqueológica, eis a pergunta: mas qual, afinal, a Tradição Europeia? Será que tal coisa alguma vez existiu, ou será possível aferir a sua entidade?

Neste nosso escrito, a interrogação incidirá, somente, no universo das artes, acabando, assim, por tornar menos hercúleo o trabalho. Contudo, como encontrar uma inovação da conservação e uma conservação na inovação quando olhamos para a arte europeia? Entendendo a tradição como essência, que seria simultaneamente origem, fim e verdade, onde é que ela estaria para colocar Miguel Ângelo e Petrarca ladeados por Valie Export e Jennifer Egan no seio da Arte?

Há mais de um século atrás, em 1917, no preâmbulo do High Modernism, e num período extremamente fecundo de mudança de epistemologia metaliterária, T. S. Eliot escreve um dos seus mais afortunados ensaios, “Tradition and the Individual Talent”. Na primeira parte deste, Eliot apresenta uma definição de tradição enquanto ordem simultânea e uma caracterização de poesia “as a living whole”.

Na verdade, literatura e tradição aparecem como dois termos praticamente equivalentes. Quando um escritor cria, este deveria, sempre numa atitude autossacrificial, ter diante de si o sistema literário – entendido como a totalidade das obras que foram escritas, desde Homero até o momento presente – como uma grande sincronia dinâmica, cujo movimento depende da sua pena. Ademais, o artista deve possuir um sentido do intemporal e do temporal juntos, pois, sempre que se produz uma obra nova, esta, alterando o sistema literário como um todo, transforma individualmente cada obra que a precedeu. Vemos, assim, como quase meio século antes de Gadamer, e quase um século antes de Harold Bloom, Eliot já havia compreendido, tal como os seus contemporâneos formalistas russos e o seu projeto de ciência literária, que era necessário reequacionar o conceito de «tradição», que, até então, era encarado no universo literário apenas no mais imobilista, epigonal e recriacionista dos sentidos.

Para o autor de The Wasteland, tradição e inovação (entendida como particularidades de um autor, ou movimento) não são dois termos de uma antítese, mas estabelecem, sim, uma relação de hiperonímia e quase equivalência. A totalidade de todas as obras já alguma vez escritas é como um tabuleiro de xadrez, no qual o movimento de uma única peça não só altera a totalidade do jogo, como também foi previsto por este. Por isso, referimos há pouco que tradição e literatura são praticamente sinónimos. É sempre impossível criar fora da tradição, pois esta é que dita e prevê o aparecimento de novas obras.

Tal como escreve Joaquim Manuel Magalhães na sua tese de doutoramento A consciência da literatura e do real na poesia de Dylan Thomas, construir contra a tradição pode ser criar em oposição à mesma, ocupando os vazios que a tradição deixou (como foi o caso do Romantismo e do Dadaísmo, por exemplo), ou criar em contraluz com a tradição, recuperando-a e reequacionando-a (tal como fizeram os surrealistas).

Todavia, de ambas as maneiras, a tradição é insuperável, sendo esta um todo orgânico que, tal como escreveu Yuri Tynianov em “Da evolução literária”, funciona perpetuamente como uma transmutação de formas e funções.

Porém, volvido um século das vanguardas e das teorizações de Eliot e dos formalistas, cabe-nos hoje, no século XXI, a tarefa de perceber se tal entendimento da tradição é o mais acertado, e como compreender a evolução das artes nos últimos cem anos. Será van Eyck responsável pelas últimas salas da Coleção Berardo? Ou, o que terá Sá de Miranda que ver com os experimentalismos mais que serôdios das primeiras décadas deste século, tal como Eliot sugere ter? Como enquadrar o estado presente da arte na tradição europeia?

Contrariamente àquilo que acontece e aconteceu com diversas culturas da história da humanidade, nós estamos, na Europa, presentemente habituados a conceber a história da arte (em oposição radical à visão de Eliot) como uma sucessão de sincronias parcamente comunicáveis que nada mais que uma rutura estabelecem com as suas antecessoras, numa temporalidade completamente linear, e, fruto ainda de uns resquícios de positivismo finissecular misturados com o fulgor neoliberal e moderno pela novidade, tendemos, sumariamente, a ver estas alterações como constantes melhorias. Todavia, nem sempre foi este o caso na nossa própria civilização.

Não é uma arte que reequaciona e cria a partir dos seus antecessores, mas uma arte que se limita a reproduzir os seus princípios programáticos numa espiral dogmático-relativista de destruição que se quer inovadora, mas cai no conformismo do não-conformismo universalizado.

Tal como defende Aguiar e Silva em “Para a revisão do conceito de maneirismo”, ensaio em que revisita a sua tese de doutoramento, o século XIV iniciou, em Itália, um mega-período das artes e das letras ocidentais que durou até o final do século XVIII, com o advento do Romantismo, e que foi absolutamente matricial e insuperável para tudo que a arte concerne na nossa civilização. Compreendendo em si aquilo que apenas fronteiras frequentemente mal definidas e porosas estabelecem como Renascimento, Maneirismo, Barroco, Rococó e Neoclassicismo esta grande época deixa-se caraterizar, essencialmente, por uma praxis e uma metapoética essencialmente neo e ultra-horacianas. Uma poética normativa definia positivamente a arte num projeto total de eleição de temas, formas, motivos e géneros. Quanto mais o artista individual (uma figura não com muito relevo) se aproximasse destas regras do bom senso e do bom gosto, mais qualidade, deduzida deste processo equacional, teria e mais se assemelharia aos grandes mestres da antiguidade, eles próprios também já conformados e interpretados à luz de poéticas quatrocentistas e oitocentistas.

Com a certidão de óbito deste mega-período, que foi a fase final do Neo-Classicismo Francês, e com o advento do Romantismo Germano-Britânico, cessa a poesia, e a arte em geral, positiva e normativamente encaradas e inicia-se uma nova tradição de rutura e voltada para a negatividade e a originalidade, que, tal como observa Octavio Paz em Los Hijos del Limo, tendo a sua origem no Romantismo conhece o seu culminar e revigoração nas vanguardas do princípio do século XX.

Posto isto, e, na aparente evidência de não uma, mas sim de duas tradições europeias, como harmonizar o desenvolvimento das artes com a aparentemente acertada visão de Eliot?

Efetivamente, Eliot estava correto na sua visão da arte, contemporânea das vanguardas (hoje já apelidadas de) clássicas. Para Joaquim Manuel Magalhães, o Romantismo não foi uma rutura drástica e ingente, mas sim uma rejeição e renovação da estética exaurida do Neo-Neoclassicismo, a partir de dimensões que, ainda que menores e marginais, já estavam latentes na produção literária. Volvidos pouco mais de cem anos, o seu programa mais revolucionário foi aproveitado pelas vanguardas do início do século passado, que, por sua vez, se faziam em contraluz e na esteira das estéticas do século XIX e surgiam organicamente enquanto resposta às suas problemáticas.

Todavia, tal como o próprio nome indica, as vanguardas são sempre as primeiras a perecer e estas não sobreviveram mais para além das primeiras décadas do século XX. Após a sua morte, e mal-logrados os esforços do Surrealismo para restabelecer a tradicionalidade e legitimidade da arte (na negação, perfeitamente vanguardista, do Dadaísmo, seu antecessor), desagua para a restante produção artística da segunda metade do século XX e das primeiras décadas do século XXI, única e toscamente o desejo incessante de criação que nada mais pode ser que destruidora e aniquiladora de qualquer vestígio em comum com a arte do passado. Não é uma arte que reequaciona e cria a partir dos seus antecessores, mas uma arte que se limita a reproduzir os seus princípios programáticos numa espiral dogmático-relativista de destruição que se quer inovadora, mas cai no conformismo do não-conformismo universalizado.

Verdadeiramente, podemos compreender, se atentarmos novamente na proposta eliótica de tradição enquanto hiperónimo de inovação, que o verdadeiro corte com a tradição não se deu com o Romantismo, nem com o Modernismo, mas sim com o exaurir das neovanguardas (conceito já, analiticamente, um pouco paradoxal…).

Deduzido do seu entendimento da tradição, Eliot escreve-nos que “to conform [to the tradition], would not be to conform”, pois a tradição já contém e prevê a inovação, e, se algo for “not new” então isso seria “no work of art”.

Posto tudo isto, como selecionar o problema da arte contemporânea? Como retomar onde as vanguardas clássicas ficaram? Talvez se confrontarmos a visão de Eliot com a arte produzida nos nossos dias, surjam algumas pistas e um esboço de diagnóstico do interior dos nossos museus e livrarias…


Bibliografia

Aguiar e Silva, V. M. (2020). “Para a revisão do conceito de maneirismo” in Colheita de Inverno. Almedina;

Eliot, T. S. (1986). “Tradition and the individual Talent” in Selected Essays. Faber and Faber;

Magalhães, J. M. (1979). Consequência da literatura e do real na poesia de Dylan Thomas. Dissertação de Doutoramento em Literatura Inglesa apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;

Paz, O. (2008). Los hijos del limo. Tajamar Ediciones;

Tynianov, Y. (1999). “Da evolução literária” in Teoria da Literatura: textos dos formalistas russos (ed. T. Todorov). (trad. I. Pascoal). Edições 70;

Zambrano, M. (2012). A agonia da Europa. Vega.

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