Na sequência da queda da URSS e do fim do bloco comunista foram-nos prometidas as maiores delícias sobre a Terra, era a vitória final do liberalismo, a Humanidade tinha atingido o pináculo das suas realizações e a própria História terminava ali. Sem passado, que era alvo das maiores críticas como uma era obscurantista e reaccionária, e sem futuro, a Humanidade tinha diante de si um longo presente, ancorado na repetição, na padronização e no conformismo de uma sociedade hiper-consumista e alienada. 

Apenas dez anos volvidos sobre a queda da URSS, os ataques do dia 11 de Setembro de 2001 colocavam de novo a História em movimento, prenúncio de uma série de movimentos dos países do Sul, das zonas periféricas, dos excluídos do novo Jardim do Éden, cosmopolita e globalizado. Às elites e povos narcotizados por uma existência adoçada com o extremo dos confortos materiais, tais movimentos violentos, arcaicos e religiosos, pareciam mais estranhos, do que se tivessem acabado de chegar de outro planeta. 

Os EUA e os seus satélites ou zonas de influência eram apresentados por alguns como uma nova espécie de império, nomeadamente por pensadores como Negri e Hardt, um império não tanto focado em possessões e controlos territoriais, dada a natureza líquida e talassocrática do poder americano, mas sim nos poderes suaves do dólar, da cultura americana e do controlo das mentes através dos poderosos mass media norte-americanos, a que se juntaria o poder dos grandes conglomerados tecnológicos, criadores das redes sociais. Poderes suaves reforçados, sempre que necessário, com o enorme poderio militar dos EUA, em nome de extirpar do mundo mundivisões diferentes, assegurar o controlo de matérias-primas e facilitar a padronização cada vez mais afunilada exigida por um sistema económico finalmente despojado de todos os freios, e já claramente a operar em sobrecarga. Padronizar, uniformizar, encaixa-se na lógica da racionalidade económica.

Vivemos na sociedade da transparência, da participação, da conexão constante e do excesso de informação. É a época da Big Data, a estatística exponencial, por oposição à sabedoria. O bombardeamento constante de informação impede o pensamento crítico, a reflexão e ainda mais a dissidência. Distrai, anestesia e cansa.

Dá-se a auto-destruição de todos aqueles a quem é dito que não há nenhuma alternativa. Caídos na desesperança, consomem-se a si mesmos. A propaganda dos regimes liberais reforça claramente essa tónica, a de que o status quo vai prolongar-se ad eternum e de que alterações de rumo são impossíveis para o monólito em aceleração em que se tornou o sistema liberal-capitalista.  Este incentiva a liberdade total em relação a uma série de laços e de instituições; aí reside a força do seu controlo, na permissividade, nessa liberdade em relação a algo, que é substancialmente distinta da liberdade para fazer algo. Incentiva também a participação, pois o estreitar de laços e o aumento exponencial de interacções ajuda a instaurar o conformismo e a padronizar as ideias, criando uma massificação do pensamento, bloqueando a criatividade e castigando a idiossincrasia. A pressão para a uniformidade nunca foi tão forte. Dependência ao invés de submissão. Sedução ao invés de repressão.  É a época do panóptico digital de que nos fala Byung-Chul Han, filósofo coreano radicado na Alemanha, para o qual desnudamos voluntariamente tudo sobre nós, gerando quantidades massivas de dados, que são aproveitados por companhias especializadas, para seu próprio benefício e lucro e para manipulação de processos de escolhas e decisões, como as eleições. 

Diego Fusaro, um filósofo italiano contemporâneo, fala-nos da globalização neo-liberal como uma questão de fé. Sendo uma espécie de religião, uma crença que ultrapassa critérios racionais, estabelece os seus dogmas e mandamentos, com consequente excomunhão e autos-de-fé para os descrentes, para os hereges e os apóstatas. O neo-liberalismo não acredita em Deus, mas acredita no capital. Opôr-se aos dogmas globalizantes é ser votado ao ostracismo, ao silêncio ou à morte social. A repressão dos dissidentes prossegue em crescendo segundo a percepção que o sistema tem das ameaças que se lhe apresentam. 

A era pós-moderna e pós-industrial trouxe consigo, aos países mais avançados tecnologicamente, a virtualização de tudo, incluindo da economia, do trabalho, das finanças e das relações interpessoais. O mundo virtual não é mais do que um simulacro de realidade, criado a partir de zeros e uns, de código binário: não é efectivamente real. 

A hegemonia de um sistema de pensamento neo-liberal tem implicado a transformação do mundo em mercado. O que era a economia? Era a gestão racional dos bens escassos, necessários à vida. Agora é a própria vida. Face aos impactos da exploração desregrada dos recursos finitos e de um consumismo omnipresente, percebemos que a dita racionalidade perfeita afinal é irracionalidade! Quem poderia adivinhar?! O que é bom para mim, afinal não é bom para a comunidade, nem para o planeta. E não há nenhuma mão invisível para intervir no momento certo.

Diego Fusaro vinca a dicotomia entre a terra das raízes, contra o mar das finanças, entre a talassocracia e a epirocracia. Novos espaços para o mercado, através das transgressões e de um pseudo-anticonformismo que se limita à desconstrução ininterrupta de barreiras e de limites. Passagem da Idade do Herói à Idade da Vítima, ou seja, da era dos deveres à era dos direitos. 

O Homem pós-moderno, tornado no centro do mundo, mostra os sintomas do antropocentrismo: vive deprimido, angustiado e com sentimentos de culpa. Somam-se os drop-outs do sistema e os burnt-outs. Efeitos ainda do nihilismo nietzscheano causado pela morte de Deus e por não ter encontrado ainda um outro propósito para a sua vida? Incontáveis milhões de crentes no absurdismo da existência. O sistema tenta resolver isto a seu favor com a proliferação como cogumelos de psicólogos e outros profissionais da saúde mental, do optimismo e da felicidade. É um exército ao serviço do sistema actual, tendo como base o desenvolvimento de técnicas da psicopolítica e a existência de conglomerados tecnológicos de grande poder. A psicopolítica é um conceito bastante explorado por Byung-Chul Han, que o percebe como o método de controlo social da pós-modernidade. A psicopolítica segue-se à época da crueldade e dos suplícios, bem descrita por Friedrich Nietzsche em Para a Genealogia da Moral e à época da biopolítica, explanada por Foucault, e cujos mecanismos são bem esmiuçados em Vigiar e Punir. Esta é uma época de horários e posturas rígidos e espaços delimitados, de um condicionamento corporal e espacial para obter uma ortopedia do espírito.

A sociedade actual, da cibernética, não reprime usualmente. Pelo contrário, incentiva à partilha e à participação, à transparência. É a sociedade da auto-ajuda, do coaching, da cura espiritual. Para nos opormos a ela provavelmente teríamos de fazer o contrário, de não participar, de não partilhar, de optarmos pelo silêncio, uma Schweigenpolitik, inspirada pela passagem à floresta do alemão Jünger. É também uma civilização faustiana, ávida de poder e que esqueceu a vida em si, que tem grande horror a parte dela, sobretudo à parte violenta e cruel, mas cria simulacros e sucedâneos da mesma. Precisamos da ousadia de novos Prometeus, capaz de tomar o destino nas suas mãos.

Vemos diariamente a exploração massiva do medo e do sensacionalismo, como ferramentas de controlo, ao que se junta o viver em consecutivas crises. O triunfo de um sistema que crê na acumulação e no crescimento sem limites conduz a que as pessoas estejam esgotadas, deprimidas e isoladas como nunca estiveram. Imaginar que as massas pós-modernas possam integrar um movimento revolucionário é apenas fantasia. Além do mais, quando se desencadeia uma revolução, ela foge do nosso controlo, ganha vida própria e poderá dar origem a muitos fenómenos que nem sequer previmos. O trabalho de criação de alternativas será longo e obra de uma minoria dedicada e imune ao desânimo.

É nisto que se insere a criação de um mundo multipolar, uma vez que os princípios morais, políticos, económicos e culturais não são, nem devem ser, universais. O mundo multipolar deverá dividir-se segundo as linhas de grandes civilizações, como as propostas por Samuel Huntington, em grandes espaços tendendo para a autarcia económica, mas interagindo com outros grandes espaços, numa lógica de diálogo e não de choque. Além do mais aplicando sempre o princípio da subsidiariedade, o que uma organização mais pequena pode fazer, não precisa de ser da competência de uma organização mais vasta, seguindo o princípio: local, regional, nacional, continental. Os grandes problemas e desafios do futuro são demasiado grandes para poderem ser resolvidos individualmente, têm de ser resolvidos por entidades supranacionais, mas com elementos de identificação comuns entre as suas partes. Só assim será possível combater a era da indiferença, retomar as comunidades solidárias e orgânicas, para uma vida com propósito e significado.

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