A finalidade do presente artigo é a de lançar algumas bases para uma noção de Pátria, para que a partir delas se constitua a concretização política que é o Patriotismo. Muitas vezes Patriotismo é confundido com uma preservação obstinada das leis e das instituições, que assim degeneram no estaticismo, incapazes de dinâmica. Patriotismo também não é apenas defender o nosso espaço territorial, nem muito menos o mero sentimentalismo de pertencer a um grupo. Tudo isto poderá ser elementar para a compreensão do que é a Pátria, mas serão instâncias inferiores ou parcelares do que ela realmente é.
Pátria como corpo e processo
“Pátria”, do latim patria1, relacionado com patrius, como adjectivação do singular do genitivo de pater (patris), relaciona-se etimologicamente com um princípio solar e masculino. Entre nós, deve ser visto como património, com o qual “Pátria” partilha o étimo, que é transmitido sucessivamente de geração em geração, decorrendo daqui a sua natureza tradicional. A Pátria é língua, história, moralidade, espiritualidade. É por ela que nos afirmamos e significamos o que nos envolve. A Pátria, enquanto tradição, é, materialmente, consciência transcendental compartilhada, na medida em que é i) um corpo de específicas vias de significação humana, pressupostos do conhecimento ii) por parte de um não-Ser de que iii) toda a Nação toma parte, e, em termos de processo, uma dialéctica, entre a conservação e a inovação, o que implica que na transmissão sucessiva desse corpo haja uma adequação entre os princípios imutáveis nele plasmados e o concreto momento histórico em que as gerações, que participam dessa transmissão, se encontram. Enquanto corpo dotado de dinamismo dialéctico, também é dotado de finalidades materiais, sociais e espirituais para os quais a Pátria se move2.
Expondo por partes, o adjectivo transcendental vem ao encontro de uma dimensão que afecta a forma como o Homem conhece os objectos. Todos nós somos afectados pela língua que falamos e por que pensamos, bem como por todo um conjunto de símbolos, o imaginário e os mitos da nossa história. Quando Kant procurava, na sua filosofia transcendental, procurar as possibilidades de conhecimento, isto é, a forma do conhecimento3, ele não se teria abeirado da componente material que implica nas mesmas possibilidades do conhecimento. Já quanto a Heidegger, uma vez que a linguagem poética é que permite à linguagem da filosofia a abertura ao ser4, e já que a poesia nacional se repleta de palavras intraduzíveis, é certo que uma filosofia nacional não só é possível como também necessária. Quanto a consciência, ela designa o não-ser, que não é o nada, mas simplesmente aquele que em relação ao ser se distingue, e que se reconhece distinto do ser em relação a tudo que o circunda: ou seja, é a noção de sujeito, cuja subjectividade é sempre relacional, perante o Outro, mas que não condiz com o sujeito empírico. O adjectivo compartilhado designa propriamente o “tomar parte de” ou o “ter parte em”, ou ainda o “participar de”.
À Pátria subjazem dois termos fundamentais: i) a Nação, o “quem” que transmite e que toma parte da consciência transcendental compartilhada; e ii) a Mátria, o “onde” se transmite e se toma parte da Pátria. O “quem” e o “onde” são totalmente relevantes para compreender a Pátria.
Nação
Por um lado, “Nação”, do latim nationem5, singular do acusativo de natio, designa a tribo, o povo, a raça, relacionando-se com nascor, assim lidando com a comunidade de nascidos do mesmo sangue. Definição estática, ela necessita das qualidades da Pátria para se dinamizar. Por outro lado, a Pátria necessita da Nação para as finalidades daquela serem cumpridas, pela determinação concreta e histórica do Ideal pela obra ou os feitos. O problema do nacionalismo ortodoxo surge na absolutização da Nação, estatizando-a no imobilismo institucional, ou fechando-a em si mesma, convidando-a quer ao atrofiamento, quer à luta contra todas as Nações, que é fenómeno próprio do “nacionalismo burguês”, condição necessária à acumulação privada do Capital por uma clique internacional. O pseudo-patriotismo também é redutor e unilateral quando pretende a afirmação das leis e instituições sem o “quem” que as preserve e dinamize segundo o móbil imanente à Pátria: nesta senda, denunciamos algumas teorias que pretendem ver que Portugal é apenas um cadinho multiétnico sem definição genética própria. Por isso, afirmamos a Pátria e a Nação.
Mátria
Por outro, “Mátria”, vocábulo criado pelo Pe. António Vieira, nos seus Sermões, é a “mãe que nos cria”6, e remonta às raízes matriciais da Pátria. Dimensão terrantesa, lunar e feminina, está em causa um espírito do lugar7, configurado em Portugal na dualidade paisagística entre o Norte e o Sul, a montanha e a planície, o mar e a terra. Certo é que outras terras tenham dualidades, mas em Portugal este atributo é mais vincado e levou a desenvolvimentos culturais significativos, como a saudade, que supera a contradição entre a nostalgia passadista lunar e a esperança futurante solar, e como a fusão entre cultos lunares e solares, desde a passagem dos primeiros povos por terras do Extremo-Ocidente europeu.
Conclusão
Cada um dos termos Pátria, Nação, Mátria compreende concretizações políticas respectivas, mas que devem sempre obedecer a uma acção unitária. A defesa da Pátria na língua, na cultura, na espiritualidade, necessária à concretização de uma teleologia, da Nação na integridade genética e étnica da comunidade, indispensável à preservação dos homens que levarão a cabo tal teleologia, e da Mátria no seu património ecológico, crucial para que o espírito do lugar, que inspirou os nossos antepassados, se preserve, não se podem separar, sob risco de degeneração em sistemas estáticos8 como o nacionalismo ortodoxo, o pseudo-patriotismo e o ecologismo.
Bibliografia
Heidegger, M. (1973). Carta Sobre o Humanismo. Guimarães & C.ª Editores.
Kant, I. (1985). Crítica da Razão Pura. Fundação Calouste Gulbenkian.
Machado, J. P. (1977). Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, IV. Livros Horizonte.
Quadros, A. (1963). O Movimento do Homem. Sociedade de Expansão Cultural.
Quadros, A. (2020). Portugal: Razão e Mistério. Coedição Fundação António Quadros e Alma dos Livros.
- (Machado, 1977, p. 323) ↩︎
- “[…] a Pátria é a relação viva, profunda, substancial de um povo, não só com uma tradição contínua, transmitida de pais para filhos e articulada por laços culturais, políticos e jurídicos, mas também com um projecto teleológico original.” (Quadros, 2020, p. 205) ↩︎
- (Kant, 1985, p. 575) ↩︎
- “[…] O pensar é, sem sua essência, enquanto o pensar do ser, por este requisitado. O pensar está referido ao ser como o que está advento (l’avenant). O pensar enquanto pensar no advento do ser, está ligado ao ser como advento. O ser já se destinou ao pensamento. O ser é como o destino do pensar. O destino, porém, é em si historial. Sua história já chegou à linguagem, no dizer dos pensadores. // A única tarefa do pensar é trazer à linguagem, sempre novamente, este advento do ser que permanece e em seu permanecer espera plo [sic] homem.” (Heidegger, 1973, p. 123) ↩︎
- (Machado, 1977, p. 188) ↩︎
- (Machado, 1977, p. 78) ↩︎
- (Quadros, 2020, p. 46) ↩︎
- E, de certo modo, cráticos, por oposição a árquicos. (Quadros, 1963, p. 312) ↩︎
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