A Pátria é uma religião.

Sampaio Bruno

Há um conjunto de características essenciais, de traços específicos que distinguem a singularidade intrínseca de cada povo. Nelas, enquanto membros de uma comunidade, participam os seus integrantes que – segundo uma perspetiva aristotélica da natureza humana -, são seres comunitários e políticos. Destes predicados particulares, raros são os sujeitos que tomam consciência viva e presente da sua existência inequívoca, imbuídos de corpo e alma numa modernidade largamente catalisadora da corrupção e depravação hedonista de génese luciferina, redundantes inevitáveis na decadência e na dissolução que desagregam toda a organicidade do seu ser. Com efeito, estabelece-se uma determinação conceptual que orienta o rumo dessa comunidade e a legitima com um espaço, um conjunto de normas, uma autonomia e, por corolário, uma mundividência de si e do que lhe é exterior.

A comunidade, no sentido antigo da filosofia grega do período clássico, possuía a consciência compartilhada de se inscrever numa ordem superior de eventos e realidades da qual ela própria era uma parcela que justificava por si mesma a substância integrante de todos os seus membros. Bem entendido, resulta concluir que, deste modo, constituía uma Pátria, uma manifestação superior e transcendente dessa mesma comunidade1. Isto é manifesto, por exemplo, no período ulterior à República Romana.

É lícito, pela solidez da sua história, olhar de forma também semelhante para a realidade nacional nesse sentido agregador. Não se nos assemelha ser desprovido de razão o entendimento de Portugal que tiveram alguns dos seus mais nobres representantes – de D. Duarte a Afonso de Albuquerque, Camões ou o Infante D. Henrique, sem esquecer Santo António e Fernando Pessoa que, a par de outros, firmariam a ideia de Pátria à nação portuguesa. Este princípio de ligação comum que constrói e conduz o destino pátrio começa a delinear-se, constituindo-se como uma tradição.

Qual a natureza desta tradição? Tradição, no sentido trivial, é aquilo que se transmite e aquilo que religa – note-se, de suma importância o fator religioso, a religação pátria –: o que estabelece a dialética que virá identificar as raízes e os fins dessa ligação. Tendo como adquirido e evidente a inegável manifestação de uma Pátria portuguesa, essa realidade meta-histórica e espiritual – não esquecendo a sua aceção etimológica, a terra dos pais –, ou seja, o que estabelece a vinculação do homem aos seus antepassados fazendo a mediação com os futuros. Como afirmava António Quadros: “Terra dos Pais, é necessariamente também a Terra dos Filhos e dos Irmãos.” (Quadros, 2020, p.205) Este movimento de interligação com o passado implica uma relação com o presente histórico e com o futuro, as categorias referenciais da qualidade temporal visando a superação das mesmas realizadas num Ser Espiritual Português e oferecendo-se como uma causa final, concretizada nessa mesma instância transcendente. 

O papel da filosofia portuguesa realiza-se, como apontava Orlando Vitorino, enquanto afirmação da consciência de que o povo português, os seus heróis e “(…) aqueles que por obras valerosas/ Se vão da lei da Morte libertando (…)” se constitui por participação como elemento superior na entidade espiritual da Pátria.

Daqui deduz-se que esse povo, detentor da visão espiritual de si mesmo, expressa nas superiores manifestações da sua cultura – que, como indica Álvaro Ribeiro, é o caminho para o culto – na sua poesia e na sua grande matriz identitária, a língua, que se molda enquanto expressão de um pensamento próprio patente na filosofia e na religião. Este pensamento virá a assumir-se numa demonstração única num momento da história da filosofia portuguesa com a obra de Sampaio Bruno, sem negligenciar tantos outros que para tal facto contribuíram. Há, portanto, uma corrente que se revela, mais oculta ou mais imperiosamente ineludível, enquanto expressão de um pensamento notoriamente português.

Esta ideia poucos terão firmado tão bem como Teixeira de Pascoaes na sua eminente obra Arte de Ser Português (1915), compondo uma análise fixada no ideal do corpo espiritual da Pátria que se consubstancia tanto na sua geração natural contínua como na vertente mística da sua obra e na ontologia da Saudade. Com efeito, segundo o poeta, o Ser Português é a síntese da sua Raça2 e da sua Pátria: em suma, é notória a defesa do valor existencial, senão mesmo vital, da sua língua, da poesia, de uma história, uma criação ímpar sem esquecer a sua relação com a filosofia e com a religião, de uma arte – enfim, de ser português na sua identidade única.

O papel da filosofia portuguesa realiza-se, como apontava Orlando Vitorino, enquanto afirmação da consciência de que o povo português, os seus heróis e “(…) aqueles que por obras valerosas/ Se vão da lei da Morte libertando (…)” se constitui por participação como elemento superior na entidade espiritual da Pátria. Surge, portanto, como mediador, a sua Tradição cristã remontante a Ourique com mais de 800 anos de história. Esta visão completar-se-ia com a independência soberana do Estado português, que hoje apenas serve a anulação do seu mesmo Ser.

Poder-se-ia indagar a legitimidade de afirmar ainda, dado o fator limitante e crucial da conjuntura atual da nação obstruir a afirmação da Pátria e da Tradição portuguesa cristã, se essa mesma Pátria existe ou é meramente um devaneio idílico respeitante ao passado. Concluir-se-ia que a realidade portuguesa está orientada para a dissolução da nação dado o caos em que se encontra. No entanto, há sempre Pátria desde que haja a consciência dos princípios que presidem à sua existência histórica real. Portanto, não é sem desdém que se evoca a tese de Álvaro Ribeiro segundo a qual apenas existiria política portuguesa quando existisse uma pedagogia portuguesa orientada pela filosofia. Dado que, sem Tradição, não há realidade ontológica para a realização e manifestação rumo ao sagrado e ao infinito inerente à natureza humana, e, sem o conhecimento do princípio fundamental da vitalidade do seu mesmo povo, não haverá a fundamentação para a justificação da Pátria portuguesa – enfim, essa cabeça orientadora da teleologia histórica de uma nação do extremo ocidente da Europa.

Cabe, por fim, à filosofia portuguesa exercer a sua paideia, a formação integral dos portugueses, daquilo que é seu dever defender e lutar, tanto a identidade como a cultura portuguesa, com uma disciplina educativa nacional. Para tal, o Estado deve impreterivelmente separar-se da orientação universal e modernista dos restantes povos da Europa e trans-atlânticos (o seu líder de hegemonia cultural), uma uniformidade autofágica aceleradora do seu processo de diluição, imerso num imanentismo profanado em recusa obstinada na participação transcendente do seu Ser Espiritual Português. 


Bibliografia

Gala, E. (1999). A filosofia política de Álvaro Ribeiro. Fundação Lusíada.

Pereira da Costa, D. (1978). A Nau e o Graal. Lello Editores.

Pascoaes, T. D. (1998). Arte de Ser Português. Assírio & Alvim.

Quadros, A. (2020). Portugal, Razão e Mistério. Alma dos Livros.


  1. Pode já constatar-se esta afirmação com Homero em “Ilíada” e “Odisseia”, poemas épicos do período arcaico da Grécia antiga e anteriores à constituição sólida da pólis. ↩︎
  2. Não se confunda este conceito com qualquer outro de índole meramente racial e étnico. É explícito Pascoaes em especificá-lo como: “(…) um certo número de qualidades electivas, (num sentido superior) próprias de um Povo (…). (Pascoaes, 1998) ↩︎
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