James Boswell nasceu em 1740 na Escócia. Apesar de se sentir distante da “civilização” mais metropolitana do império britânico, é, ainda assim, filho do Lord Auchinleck (juiz do supremo tribunal escocês). A fina flor da elite escocesa, o jovem Boswell vai ter aventuras e desventuras a tentar aproximar-se da ideia de cavalheiro que tem de si, de amante, de homem bravo e cheio de qualidades. À medida que vai crescendo, vai desenvolvendo as suas funções e competências, tendo-se tornado autor, biógrafo (tendo um particular relevo a biografia do seu amigo e mentor, Samuel Johnson), advogado e jurista.
O diário do jovem James Boswell, de 22 anos, começa com o preceito délfico1. Ele tenta-o verdadeiramente, apesar dos seus defeitos pessoais. A autobiografia torna-se o espelho de um certo narcisismo, mas também de uma melhoria pessoal constante – é terapêutica, é a forma como um homem se resolve com a História, é confessional. Sabe Boswell, quando o inicia, se se quer mesmo conhecer? O que é que isso implica? Novo, Esquire, cheio de vontade de vida, todo o nosso herói é pulsões, todo ele é paixões e contrapaixões, resoluções viradas ao contrário e um desejo imenso de melhorar. Sabe, no entanto, que as pessoas não mudam, mas vão-se transformando. Envelhecem, lentamente, até outra coisa diferente. Quando James Boswell começa o seu diário, tinha acabado de voltar à cidade de Londres pela segunda vez, estava separado das garras puritanas da sua família escocesa, e o mundo ainda não conhecia repúblicas modernas – estávamos em 1762. O problema de Boswell parece ser que quando se olha ao espelho, apesar de tudo, encontra um homem que não quer ser. Não se vê como um herói, mas sim como uma figura imoderada e exagerada, talvez demasiado gregária. Boswell mostra-nos nas suas didascálias diárias a si mesmo (pequenas anotações que originalmente foram feitas só para a sua vida diária) a sua necessidade de se acalmar, de se moderar, de se manter retenué, ou seja, retido. De uma forma, enclausurado pela moral, pelos costumes, pelas ideias que os outros terão dele (nem que seja para as virar ao contrário ou desfazer).
Perante o seu diário londrino temos acesso ao homem interior, nas suas intuições contra a multidão, na sua distância do Outro, na sua aproximação a um homem “abstracto”. Mas há sempre uma certa distância entre o que este homem abstracto é e o que o homem específico, Boswell, consegue ser. Boswell é a fonte de uma evidente série de contradições, muitas vezes sem ter consciência de que o está a ser. Boswell é simultaneamente moralista e obcecado por prostitutas. Quer corromper mulheres casadas com infidelidades, mas também procurar uma esposa prendada para si. É agressivo verbalmente, mas por vezes hipersensível quando os outros lhe apontam a espada. Nos mesmos dias em que vai à catedral, vai comprar proto-preservativos para não apanhar a gonorreia, que apanha2. Este homem imiscui-se com os autores e aristocratas para ganhar importância, e só lê quando está doente. Ocioso ao ponto do absurdo, ocupa os seus dias em salões de chá com piadas rocambolescas e engates. Outro grande crime dele é claramente escrever muito mais do que lê, algo que o próprio Johnson, caridosamente, tenta corrigir. Faz por ser polémico ao publicar cartas privadas, infantiliza-se completamente perante o conhecimento do seu ídolo, Samuel Johnson3. Mas por outro lado, vemos o vigor da juventude, a inteligência, uma tardia (mas honesta e conclusiva) demonstração de respeito parental e sacrifício familiar. Vemos um processo tortuoso de constante negociação consigo mesmo, uma tentativa de modificar os seus padrões de comportamento, tentar honestamente tornar-se um homem sério e um adulto. Se ele se consegue por vezes perdoar, é também porque entende este processo de se ser humano, da queda, e por ver no homem este espírito das contradições. Porque Boswell é hipócrita de uma forma muitíssimo honesta, não temos forma de dizer que é maldoso, porque em nenhuma altura ele nos mente. Vê-mo-lo crescer, num certo sentido, não sem perder os seus defeitos mas deitando um pouco para a dianteira a sua bagagem.
E Boswell serve o pai como quem serve Johnson e vice versa, obviando aqui uma estranha substituição – Johnson, bastante mais velho, solitário e viuvo, com filhos já enterrados, encontra em Boswell uma figura de uma criança para acarinhar (por vezes com mão pesada) até se tornar um adulto. Boswell, com uma relação difícil com o pai, vê em Johnson uma figura parental que sempre quis, um ditador de wit, um cavalheiro inglês4 e um intelectual sério. Quem estará pronto para se confrontar assim? Que espelho consegue o autobiógrafo mirar que o mais comum dos mortais prefere evitar?
Boswell é problemático, e humaníssimo, demonstra a valência mais-que-real da literatura biográfica – não estamos perante uma personagem, mas um homem. Não estamos perante uma história, mas a própria vida. No entanto, há aqui uma realidade agridoce. Boswell entende que cria, não podemos de todo confiar nele – nem ele pode acreditar nele:
[…] my Journal which I wished to contain a consistent picture of a young fellow eagerly pushing thro’ life. But it serves to humble me, & it presents a strange & curious view of the unaccountable nature of the human Mind. I am now well & gay. Let me consider that the Heroe of a Romance or novel must not go uniformly along in bliss, but the story must be checquered with bad fortune.
Boswell, 2010, 27 February 1763
Há talvez aqui um pequeno impulso ao abismo, uma ideia de criar problemas pela aventura, de se jogar ao mundo exterior e quase desejar o pior. O pior para a construção de uma narrativa, algo que seja verdadeiramente diferente. É quase como se não lhe bastasse a corrente natural da vida, e nesse sentido para não irromper a ficção na verdade, teria então que se criar problemas. Talvez em certa instância o autobiógrafo é também um fingidor, na medida em que finge para si mesmo e depois engana o próximo, e na medida em que controla tudo o que entra e sai da sua narrativa pessoal, e também neste caso onde já tem uma meta-narrativa antes de acabar o seu trabalho.
Mas este fingimento, ao qual chamamos autobiografia, é também fruto de uma procura por um Eu misterioso, como nos diz António Quadros. Uma espécie de Eu interior. Mas é um eu real, derivado de um ser autêntico depois de quebradas essas máscaras5. Não esquecer o que o nosso Quadros nos diz da autobiografia: “pois é um mundo literário, até certo ponto um mundo de ficção, mas um mundo ressumando de vida, autenticidade existencial, verdade do homem e do ser.” (Quadros, 1971, p. 382). Mas talvez até haja aqui um caminho do meio, nem escrita de vida como verdade, nem vida como ficção, mas como apontaria Jung na leitura de Quadros, Vida como Mito (Quadros, 1971, p. 385). Muitas vezes, olhando para esta realidade de a criação de um Eu literário que existe para os outros, deveremos colocar-nos a nós mesmos a questão: estaremos a tentar habitar ou criar um mito?
Segundo a leitura de António Quadros6, já aqui apresentada, o homem exprime-se através do mito, de forma arquetípica. Dá-se aqui uma formulação que parece pouco intuitiva, ou até contrária, ao funcionamento natural do mundo: O mito deve-se criar primeiro para se saber quem se é e quem se deve ser. Como nos elucida Quadros:
Fomos os heróis de um mito nebluso e obscuro. Que heróis fomos e à luz de que mito cometemos os nossos erros e perpretrámos as nossas façanhas? As autobiografias exemplares são aquelas que representam o momento de iluminação: todo o claro-escuro do passado toma um sentido, o mito formula-se diante dos olhos extasiados do autor, como um puzzle. E é só depois de formulado o mito que, através dele, uma verdade maior pode ser atingida, a verdade de todos os mitos fundido-se numa unidade não mítica, a verdade de todas as desrazões adunando-se a uma razão profunda e perene. (Quadros, 1971, p. 385)
Não será este retorno ao mito, uma espécie de retorno ao Uno? Não conseguimos retirar aqui uma importância de mistérios antigos, do nosso preceito délfico: conhece-te a ti mesmo? Este processo mitológico-autobiográfico gera a lucidez assombrosa Pessoana. O herói toma consciência do seu papel e da sua vocação, a obra toma forma sem o conhecimento do criador (sendo ela também Vida recontada) (Quadros, 1971, p. 386). O mitógrafo-mito, neste caso, nada mais faz do que deixar-se canalizar pelo seu daemon (em termos platónicos) ou até O Espírito Santo.
Concluindo, para uma nova geração absolutamente desprovida de Mito, e com todo o seu amor próprio direccionado para circuitos pouco edificantes, aconselhamos aos nossos jovens que fujam das redes sociais e outras tais armadilhas que se alimentam das características da própria juventude. Podem aplicar a natural “arrogância” da idade, e qualquer possível narcisismo, olhando para dentro. Escrevam-se, pois até na beleza da vossa banalidade poderão encontrar algo mais profundo.
Bibliografia
Boswell, J. (2010). London Journal 1762-1763. Penguin Books.
Boswell, J. (2018). A Vida de Samuel Johnson (Doutor em Leis) (J. Filardo, Trans.; 1–3). Edição de Autor.
Quadros, A. (1971). Ficção e Espírito: Memórias Críticas. Sociedade de Expansão Cultural.
- O lendário: “conhece-te a ti mesmo” que cada pessoa com uma perninha de formação clássica teve de se confrontar. ↩︎
- Perante a leitura de uma vida, nem que seja uma versão assim mais “documental”, é praticamente impossível evitar a bisbilhotice. Aproveitamos para dizer que Boswell modera-se na sua procura das “senhoras da noite” com medo de apanhar doenças, mas o seu medo acaba por se tornar real no dia 19 de Janeiro, depois de entrar em contactos com a mui fina senhora “de bem” Louisa, sempre descrita até esse momento como uma senhora séria da alta sociedade. O confronto entre ambos também fica documentado no dia seguinte:
“L. My Dear Sir! I hope you are well today.
B. Excessively well, I thank you. I hope I find you so.
L No realy Sir. I am distrest with a thousand things (cunning jade[;] her circumstances)[.] I realy dont know what to do.
B Do you know that I have been very unhappy since I saw you.
L How So Sir?
B Why I am affraid that you dont love me so well, nor have not such a regard for me, as I thought you had.
L Nay, Dear Sir (seeming unconcerned)[.]
B Pray Madam have I no reason?
L No Indeed Sir you have not.
B Have I no reason Madam? pray think.
L Sir!” (Boswell, 2010, 20 January 1763)
O resto deixamos à curiosidade do leitor… obviamos também as pontuações e marcas únicas da própria edição crítica que evidenciam algumas ausências no texto original e “reconstroem” o significado, tentando também preservar a pronúncia com a qual Boswell escreve. ↩︎ - Sobre esta relação entre Boswell e Johnson, a leitura obrigatória seria da Vida de Johnson (Boswell, 2018). Este será quiçá, o santo graal das biografias, feita numa era enciclopédica e sem limites de humildade de autores – seria evidentemente impossível para os dias de hoje pelo absurdismo da escala, o respeito pelo detalhe e a sua natureza imensamente barroca. ↩︎
- Aqui entra também um certo auto-ódio por parte de Boswell, que se torna muito evidente quando este fala dos saloios escocêses que poluem a bela Londres com os seus sotaques pindéricos e a sua rudeza campestre. ↩︎
- Meu Eu, meu Deus: vencida a auto-divinização egolátrica, quebrada a casca do ensimesmamento pequenamente liríco e empedecido, o eu pode tornar-se espelho da transcendência, caminho de diálogo com algo que o excede «ser mediador» para uma outra e a mesma realidade: a do Deus que nos fala e em nós fala no nosso próprio ideal, no nosso próprio movimento, ainda que o investamos de outros nomes, ou a Deus que por vezes ao longo da jornada, mais cedo ou mais tarde, dificilmente, penosamente, agraciadamente, aprendemos a reconhecer sob as mil máscaras que permitem a nossa liberdade…” (Quadros, 1971, p. 383). ↩︎
- Ainda numa leitura feita através da obra de Jung. ↩︎
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