O autor preferiu o Acordo Ortográfico de 1990.

Introdução

Após duas guerras devastadoras, a Europa apresenta-se genericamente como pacífica e estável. Esta é a narrativa normal dentro da psique coletiva dos vários povos europeus que, inseridos ou não na UE, têm uma visão política cada vez mais europeísta e menos isolacionista ou “neutra” como no caso suíço, conhecido por contrariar esta tendência1.

Um dos problemas desta narrativa é que confunde conceitos basilares como o pacifismo, quando na verdade o termo correto seria honestamente substituído por docilidade. O mesmo acontece para a estabilidade, que mais depressa se traduz numa estagnação que transcende o universo económico, diametralmente oposta à dinâmica reformista e de projeção futura do cumprimento do nosso propósito e vontade enquanto espaço geográfico, demográfico, político, económico, cultural e, no geral, civilizacional.

No atual estado de coisas, surge uma pergunta discreta na qual todos os europeus deveriam refletir enquanto atores políticos: o atual estado de subserviência europeia a Washington é algo que garante os nossos interesses no longo prazo?

Alguns poderão apontar a uma crescente expansão da influência de Pequim; porém, se por um lado os tentáculos do polvo chinês já se fizeram sentir em países como Portugal, Grécia e inclusive Alemanha, estes têm encarado uma crescente oposição graças a esforços materiais da própria estrutura política da UE em consonância com a vontade superior dos EUA. O exemplo mais recente é o da Itália que após eleger um governo alinhado com a visão geopolítica de Washington em assuntos basilares como a guerra russo-ucraniana, conflito israelo-palestiniano e recusa da expansão chinesa, recusou a iniciativa da rota da seda em 20232.

Caminho a prosseguir

O nosso ponto de partida para uma análise realista do atual panorama geopolítico é Portugal e a Europa. Um problema estrutural para o nosso continente é o aglomerado de traumas bélicos que servem de justificação para a presença militar americana omnipresente. Desnutrido de qualquer elemento de simpatia ou amizade movida por uma identidade comum à boa maneira construtivista (cf. Wendt), a “proteção” militar dos EUA em solo europeu é vista como um garante da manutenção dos interesses materiais que sustentam o império americano.

Posto isto, a solução para uma independência europeia passa pela consciencialização dos povos de uma Europa candidata a polo de poder, isto sem ferir suscetibilidades de soberanias nacionais, especialmente se o assunto for um exército europeu.  Transferindo esse dilema para outras áreas da vida política, igualmente sem um apoio a federalismos ou descurando a importância e autonomia material dos agentes idealmente soberanos a uma escala nacional e internacional, é do total interesse da Europa deixar de contribuir para uma dependência industrial face à China, enquanto se previne o advento de uma nova “China” no subcontinente indiano.

O comportamento das elites políticas face à Rússia também teria de sofrer uma mudança. Empurrar a Rússia para os braços da China foi um grande erro das elites europeias que hoje estamos a pagar, especialmente quando nos encontrávamos dependentes de vários recursos que hoje estão a ser direcionados para a economia chinesa. Na perspetiva de uma análise sobre o prisma da teoria realista do dilema de segurança, a Europa deu um tiro no pé ao querer desarmar-se pela via da desindustrialização, em nome das agendas climáticas, enquanto armava os seus adversários mais pragmáticos numa transferência de serviços por um preço lucrativo.

África é uma incógnita. Desde o fim do colonialismo europeu que a Europa perdeu um acesso livre e fulcral a recursos naturais e outras riquezas, optando por adaptar as suas economias à nova realidade. Por outro lado, a China não se conformou com a sua fraca presença histórica no continente africano e apostou num novo tipo de riqueza: portos marítimos africanos3 que sustentam a sua rede de comunicações e logística comercial. A mesma estratégia foi seguida no porto grego de Piraeus4.

Face à problemática chinesa e o notório falhanço dos EUA, cabe à Europa estabelecer um novo tipo de relação capaz de responder às ânsias dos vários povos africanos de forma a permitir uma prossecução de interesses mútuos em matérias imigracionistas, mesmo que sob a bandeira da solidarização.

Países como Portugal, França e Reino Unido têm um importante papel no uso do seu soft power histórico para com estes países, diferente da aproximação puramente materialista dos EUA que se foca em elementos de privatizações e trocas de capitais por valores democratizantes numa eventual adesão dos países visados no Consenso de Washington. É possível afirmar que os limites ideológicos do consenso atiraram, tal como no caso russo, vários países para o mapa de influência chinesa5.

Terceira via dos consensos

Um consenso europeu é necessário enquanto terceira via para a dicotomia liberal americana e o consenso autoritário, porém, chinês e não pró-Europeu. A Europa, perante uma situação em que se digladiam o unipolarismo americano e multipolaridade dos povos, ao escolher o seu polo, está a seguir a teoria multipolar.

O objetivo passa por atrair elites externas num cenário colaboracionista que se propõe a solucionar simultaneamente o problema demográfico europeu e a fuga de cérebros africana. Num cenário de perdas mútuas, é possível defender a abertura ao diálogo no sentido de resolver a questão migratória entre os Estados.

Este problema não se verifica nas mesmas dimensões no continente asiático6, pelo que a abordagem europeia carece de multiplicidade de cenários e usos de soft power. Por exemplo, a crise demográfica e imigracionista portuguesa é heterogénea no sentido em que enfrenta conflitos imigracionistas advindos de África, América e Ásia. Tal cenário obrigaria à formulação de uma panóplia de argumentos diplomáticos perante a negociação de acordos migratórios fulcrais para resolver o problema do século.

Conclusão

É preciso impedir que a Europa se torne no próximo Japão. Será do interesse da Europa sofrer uma niponização nos seus valores, costumes e autonomia de domínio do mundo material? Sem dúvida que não.

Por mais forte que seja o apelo a uma doutrina política materialista, é importante perceber que uma sociedade europeia dominada por valores ultra consumistas, castrados daquilo que a tradição nos ensinou para perpetuar a existência do nosso povo pela via de famílias e comunidades fortes, vai contra os naturais interesses desta civilização.

Olhemos para o caso da Rússia e da China. Dois países que racionalizaram as suas políticas internas, superaram as suas práticas marxistas passadas e abraçaram elementos característicos do capitalismo de Estado teorizado por Joshua Kurlantzick7, capaz de conciliar a propriedade privada com os interesses político estatais, sob forma de se fortalecerem e recuperarem influência suficiente para desafiarem o unipolarismo americano.

O confronto bipolar entre China e EUA acentua-se a cada ano que passa, algo perfeitamente natural dados os seus interesses opostos em matérias de domínio demográfico, económico, político e até cultural. Cabe às nações europeias agirem de acordo com essa noção e não terem receio de abraçar elementos políticos de terceira via enquanto corte com o cordão umbilical capitalista americano. Por outro lado, e apesar de ser possível manter relações cordiais com Pequim, é importante ressalvar que cair na armadilha de dependência chinesa não é uma opção, dado que este polo apenas olha aos seus interesses polares, num desígnio muito distinto de desafio à Ordem internacional pós 1991.

Se a Europa quer desafiá-la e sobreviver a esta etapa histórica marcada pelo bipolarismo sino-americano, terá de abraçar a doutrina multipolar e (re)construir-se internamente de forma a conseguir uma sobreposição às exigências materiais, e de outras ordens, que a nova independência desejada colocará no seu caminho.


  1. Express. (2023, Month Day). Switzerland faces EU referendum as Euroscepticism rises and free movement questioned. Express. https://www.express.co.uk/news/world/1331101/switzerland-eu-referendum-euroscepticism-free-movement-brexit-marco-chiesa ↩︎
  2. Lu, C. (2023, August 4). Italy Takes a Risky Bet on China’s Belt and Road in Europe. Foreign Policy. https://foreignpolicy.com/2023/08/04/italy-china-belt-and-road-europe/ ↩︎
  3. Kaar, I. (2022). China’s Ports in Africa. NBR (National Bureau of Asian Research). https://www.nbr.org/publication/chinas-ports-in-africa/ ↩︎
  4. Bali, Kaki. (2022). Greece: In the Port of Piraeus, China Is the Boss. Deutsche Welle. https://www.dw.com/en/greece-in-the-port-of-piraeus-china-is-the-boss/a-63581221 ↩︎
  5. Kelkar, R. & Wang, Z. (2023). Will the Beijing Consensus Replace the Washington Consensus? ,SSRN. https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=4579554 ↩︎
  6. Irwin-Hunt, A. (2023). Brain Drain: Countries with the Greatest Human Capital Flight. fDi Intelligence. https://www.fdiintelligence.com/content/data-trends/brain-drain-countries-with-the-greatest-human-capital-flight-82395 ↩︎
  7. Kurlantzick, J. (2016). State Capitalism. Council of Foreign Relations https://www.cfr.org/book/state-capitalism ↩︎
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