A dualidade do Homem na Tradição: Autoridade e Poder

O Homem, surgindo da fusão entre os princípios celestes e terrestres, herda, na sua natureza, o fardo da dualidade1, como aponta a Tradição. No grande teatro da existência humana, o drama desenvolve-se numa contínua descendência desde o celeste para o privilégio do telúrico, explicando assim a sucessão das Quatro Idades: do Ouro, à Prata, ao Bronze, e ao Ferro (esta que é a actual, na tradição védica intitulada de Kali Yuga)2. Mas também nos apontam os Mestres que é exigência do Homem a procura pela superação sintética da dualidade3, para além do meramente espiritual e do meramente temporal, para além do meramente activo e do meramente contemplativo, sob pena de cada um dos termos isolados se degenerar e perder a sua legitimidade: eis aqui a sabedoria da coincidentia oppositorum. Entre os variadíssimos termos de oposição elencáveis, elegemos dois para o presente artigo: a Autoridade e o Poder.

Por Autoridade, no sentido tradicional, referimo-nos à qualidade apontada por Evola que é essencialmente “transcendente e não apenas humana, considerada não como um modo vazio de falar mas sim como uma poderosa e temível realidade”4. Ora, o Poder é a capacidade de condicionar a matéria ou a vontade doutrem em função da própria, o que não implica necessariamente a existência da Autoridade. Ter Autoridade significa possuir uma força espiritual própria e arrebatadora que não necessitaria da força material (Poder) para se afirmar, pelo menos em tempos anteriores ao da Dissolução. Dado o obscurecimento da Última Idade, nem mesmo o reconhecimento da Autoridade está garantido, daqui partindo a prevalência do Material sobre o Espiritual, do Titânico sobre o Heróico, do Poder sobre a Autoridade. Do mesmo modo, ter Poder significa condicionar em sentido puramente material, pela força e pela violência. Da relação entre a força espiritual e a violência material, Evola refere a saga arcaica do Rei dos Bosques de Nemi, “cuja dignidade, ao mesmo tempo temporal e sacerdotal, passava para quem tivesse conseguido surpreendê-lo e matá-lo”5, mas esta violência estava sempre submetida a um princípio solar de Autoridade.

O debate entre a Autoridade e o Poder é a questão histórica da luta entre Poder Espiritual e Poder Temporal. Embora haja nestas expressões uma confusão entre ambos termos de oposição, o que é certo é que tanto o Espiritual como o Temporal se procuraram mutuamente: o Papa, na Respublica Christiana, arrogava-se do direito de sancionar a independência dos Reinos; e o Imperador, do direito de dispor sobre a espiritualidade dos Povos. Mas também esta luta surge em Portugal com a Rainha Santa Isabel e D. Dinis6, instituindo unilateralmente as Festas da Coroação do Imperador do Espírito Santo, carisma genuinamente português da vivência espiritual cristã, sem sanção da Igreja, já para não referir a constante expectativa de excomunhão pela Igreja sentida pela Dinastia Afonsina. Esta busca incessante entre ambos os termos, um procurando o outro, o outro procurando aquele, nasce do esforço por coincidir os opostos, procurando a Unidade perdida com a Divisão.

Estado-Autoridade e Estado-Poder

Tendo em conta o referido, a questão do Estado deve ser contextualizada nesta luta entre princípios de Autoridade e de Poder7. Podemos dizer que desde Maquiavel se tem insistido numa concepção puramente empírica do Estado (o Estado-Poder), e sucessivamente têm as mesmas concepções olvidado o aspecto de Autoridade do mesmo (o Estado-Autoridade). É verdade que o Estado é composto por um poder político, um território, e um Povo ou Nação, mas o Estado não se fica apenas pela emanação de normas, pela defesa do seu território ou pela manutenção de um Estado social. As próprias funções de justiça, segurança e bem-estar não são funções em si, mas obedecem à actualização de princípios, que são as finalidades da Pátria: ou seja, aquilo que diz respeito ao exercício do Poder (as funções empíricas do Estado) só ganha sentido em ligação à Autoridade, à força espiritual de um colectivo subjectivado e unido, ao movimento teleológico da Pátria. Temos, pois, como já sugerido, dois termos dentro do conceito de Estado: o Estado-Autoridade e o Estado-Poder.

O Estado-Autoridade é o Estado enquanto agente móbil das finalidades da Pátria, cuja natureza é eminentemente espiritual. As finalidades espirituais da Pátria são reveladas na exegese da História, no nosso caso, de Portugal, naquilo a que se pode chamar, no seu sentido absoluto, de Arqueologia, que não é a Paleologia, mas a ciência dos princípios (arché), e, na compreensão da concretização dos princípios no drama histórico de um Povo, será revelada a “História do Futuro”, diria Padre António Vieira… Ora, as causas finais de uma Pátria encontram móbil na respectiva Nação, como tivemos oportunidade de esclarecer em artigo anterior, e esta Nação, na sua convivência interna, cria uma cultura, uma língua, um conjunto de símbolos e de imaginário, de onde surge uma tradição (não no sentido perene, embora a ele se associe idealmente), uma consciência transcendental compartilhada8, um património imaterial comum e nunca individualizado. A vontade desta consciência histórica que se forma em torno de um Povo é o Estado-Autoridade.

De certo modo, as doutrinas democráticas e corporativas estavam certas quando referiam que o Estado é a reunião da Nação, mas o sentido próprio da expressão “reunião” degenerou-se numa concepção puramente empírica e do Poder, pelo que se confundiu com representatividade democrática pluripartidária. O Estado-Autoridade é reunião da Nação em espírito na Pátria e pela Pátria. Mas, mais do que reunião, o Estado-Autoridade reside em cada um dos cidadãos ou dos nacionais, porque o reconhecimento desta Autoridade na pessoa (colectiva ou singular) do Poder parte de cada uma das partes, tal como os súbditos reconheciam, nos primórdios, a Autoridade do Rei-Pontífice. O seu não-reconhecimento, porém, não implica a não-existência da Autoridade, já que tal implicaria uma noção racionalista e anti-tradicional desse princípio. A Autoridade permanece para além da vontade dos Homens.

O Estado-Poder é a configuração empírica do Estado, nos seus órgãos de soberania, no seu monopólio sobre a violência, na sua arquitectura administrativa e territorial, na sua capacidade de condicionar – ou, melhor, disciplinar –, pelo Direito, a vontade dos cidadãos em função da sua vontade, que se quer ligada à Autoridade. O Estado-Poder é o Estado que faz uso dos instrumentos de disciplina e, a nosso ver, se o “enquadramento de massas”, numa infeliz expressão de muitos historiadores, é inevitável, ao menos que ele esteja submetido a uma entidade identificável como o Estado, que, para além de ser em-Poder, pode ser – e deve ser – em-Autoridade. Estado-Autoridade só há um para a Pátria, mas pode haver uma pletora de Estados-Poder que se digladiem pelo monopólio da força.

Movimento histórico do Estado

Um Estado, sujeito aos movimentos da História, pode não ser actual, isto é, pode ser potencial e parcial, o que é o mesmo que dizer, no presente tema, que o Estado pode ser apenas em-Poder ou apenas em-Autoridade. Pode haver uma consciência colectiva pátria formada que ainda não encontrou as suas concretizações materiais nos instrumentos do Poder, mas também pode haver um Poder que seja exercido sem observância da Autoridade das finalidades da Pátria.

Por exemplo, quando se diz que Portugal não nasceu em 1128, ou 1139, ou 1143, ou 1179, quer dizer-se que Portugal não se resume ao Estado-Poder, e que, enquanto Estado-Autoridade, já existe há milénios. Este Estado-Autoridade subsiste hoje em Portugal, mas encontra-se totalmente dissociado do Estado-Poder vigente e ainda não encontrou instrumentos para se afirmar materialmente, pelo menos, desde a Reforma Pombalina do século XVIII9: ou seja, 1820, 1910, 1926, 1974 e 1975 não passaram de meros golpes de Estado, sempre frustrando a concretização das finalidades da Pátria, pela ausência de esforço no sentido da instituição de uma Païdeia, na qual se pudesse reiniciar, religar e repatriar o Povo Português no movimento teleológico de Portugal. O actual Estado-Poder quer-se também em-Autoridade, mas a vontade dos homens, crática em natureza, não o tem permitido, numa obstinada conservação das instituições vigentes, num espírito reaccionário e anti-dialéctico, estrangeirado e superficial.

Mas então como é que um Estado-Poder, desprovido de Autoridade, pode ser também em-Autoridade, tornando-se um Estado-Actual?

Arquia, Cracia e Demoarquia

António Quadros terá sido o autor a cunhar as noções de Arquia e de Cracia. A Arquia seria a manifestação da razão dinâmica na forma de regime político, caracterizado pelo triunfo dos princípios e pela adesão às finalidades espirituais do Povo, via “única capaz de cumprir a consumação dos movimentos de segunda instância, prometida pelos movimentos de primeira instância”10. Já a Cracia é a manifestação da razão estática na forma de regime, definida pela pura vontade e poder dos homens, desligada de princípios e finalidades. Ora, a Arquia é a forma de regime que possui Autoridade; a Cracia é a que está desligada da Autoridade. A Arquia, portanto, seria um Estado-Actual, isto é, um Estado em-Autoridade e em-Poder, enquanto a Cracia seria apenas um Estado-Poder.

O Estado-Poder é o Estado que faz uso dos instrumentos de disciplina e, a nosso ver, se o “enquadramento de massas”, numa infeliz expressão de muitos historiadores, é inevitável, ao menos que ele esteja submetido a uma entidade identificável como o Estado, que, para além de ser em-Poder, pode ser – e deve ser – em-Autoridade.

A Arquia pode assumir qualquer tipo de sujeito ou pessoa, colectiva ou singular, como centro da arquitectura do regime, daqui havendo a Monarquia, por exemplo; mas também a Cracia existe segundo moldes vários, como a Democracia ou a Aristocracia. Todo o tipo de regime mencionado possui o seu reflexo: o reflexo crático, ou a degenerescência, da Monarquia é a Monocracia, já o reflexo árquico, ou a superação, da Aristocracia seria a Aristoarquia, e o da Democracia a Demoarquia. A Demoarquia, particularmente referida por Quadros, seria “a República capaz de assegurar, no futuro, a evolução do homem”, impedindo o domínio do menor sobre o maior, ou do maior sobre o menor, sempre “tendo em vista a livre realização das finalidades transcendentes”11, e sempre tomando a livre expressão das massas, não segundo a Quantidade, mas segundo a Qualidade.

Transição para a Arquia: a Cracia Trans-Crática

Ora a instituição de uma Arquia opera-se sempre segundo uma Revolução, mesmo que haja uma imagem de reforma, porque a anulação da vontade crática dos Homens em função do acolhimento árquico dos princípios é sempre uma mudança de fundo que procura a re-volução, a recuperação de uma Unidade perdida, e não se procede a essa grande mudança de ânimo leve. A Arquia só é possível ou tomando os instrumentos de disciplina do Estado-Poder, ou criando instrumentos que tornam inútil o Estado-Poder vigente. De todo o modo, a Arquia, ou o Estado-Actual, só será possibilitado segundo uma Cracia trans-crática, isto é, um Estado-Poder que se procura também em-Autoridade, em que os Homens procuram anular a sua própria vontade para maior glória da Pátria.

A Cracia trans-crática concebe-se “a si mesma teorèticamente como provisória e transitória, mediatriz e motriz, criticando-se no seu mesmo conceito, promovendo conscientemente uma auto-anulação em proveito da arquia que a inspire e alimente”12. O único modo de criar as condições necessárias para que os Homens deixem a sua vontade para abraçar a grande Vontade que é da Providência é através da instituição de uma educação teleológica13, uma Païdeia, uma univocidade educativa e cultural, em torno das finalidades de Portugal, cuja falta já apontámos como uma das causas do adormecimento da Pátria. Aí, aos poucos religando e repatriando, a Trans-cracia tornar-se-á, em momento oportuno, em Supra-cracia, que, enquanto superação do puramente crático, é a Arquia.

Em plena Arquia, os princípios da Autoridade e do Poder do Estado estão de tal modo actualizados, e de tal modo se encontram imanentizados Estado, Sociedade e Homem, que não deverá existir qualquer manifestação empírica do Poder, isto é, o Estado-Actual árquico é, em termos fenomenológicos, acrático14, embora os instrumentos de disciplina se mantenham em estado latente, pelo que o Estado-Poder subsiste potencialmente, esperando a correcção pedagógica e a extinção da vontade crática.

Conclusão

O Homem não é perfeito, mas perfectível, e é em função da perfectibilidade do Homem que olhamos o Futuro, na expectativa do advento de uma nova estirpe de Perfecti, de Além-Homens, de Heróis e de Mártires. A pedagogia portuguesa do Futuro terá de basear-se fortemente no Exemplo, no Modelo de Homem, transmitido como referência de virtude às crianças e aos jovens. Assim resistimos à tendência dissolutiva e degenerescente, estática e conservadora, e, no Estado-Actual árquico, encontramos esperança na Unidade do Poder e da Autoridade e no cumprimento da Vontade da Providência neste Mundo.


Bibliografia

Dugos, C. (1999). Tradição e Simbólica do Princípio Real. Hugin.

Evola, J. (1989). Revolta Contra o Mundo Moderno. Publicações Dom Quixote.

Guénon, R. (2001). The Crisis of the Modern World. Sophia Perennis.

Quadros, A. (1963). O Movimento do Homem. Sociedade de Expansão Cultural.

Quadros, A. (2020). Portugal: Razão e Mistério. Alma dos Livros & Fundação António Quadros.


  1. (Dugos, 1999, p. 29) e (Evola, 1989, p. 23) ↩︎
  2. (Guénon, 2001, p. 7) ↩︎
  3. (Guénon, 2001, p. 8) ↩︎
  4. (Evola, 1989, p. 28) ↩︎
  5. (Evola, 1989, p. 35) ↩︎
  6. “Nascido precisamente em 1261, o futuro Rei de Portugal, cujo acesso ao trono já de si se dera por uma série de circunstâncias inesperadas, teria sido pois dado à luz no ano I da Idade do Espírito Santo. // Teria este facto, porventura visto e sentido por ele próprio como providencial, influído no gesto de criar a Festa, a cerimónia da Coroação simbólica do Imperador do Espírito Santo […]?” (Quadros, Portugal: Razão e Mistério, 2020, p. 228) Mais ainda, refere Quadros: “[…] a Festa do Império foi na verdade uma criação, uma síntese espectacular, teatral, protocolar e simbólica, de todo um pensamento, cujas raízes já observámos, mas que ganhou um novo e diferente carácter em terra portuguesa, aliás sem equivalente em qualquer outro país ou espaço cultural.” (Quadros, Portugal: Razão e Mistério, 2020, p. 228) Para além disso, parece surgir um equivalente em Portugal do ímpeto gibelino na instituição das Festas: “Tudo indica que, em Portugal como em Itália (onde se dava, pelas mesmas razões, a luta entre guelfos e gibelinos, tomando Dante o partido destes últimos contra a intromissão do Papa no que já não era a sua esfera espiritual de influência), o Clero abusava das suas prerrogativas e privilégios, desafiando pois as prerrogativas reais nas zonas em que podiam surgir naturalmente dúvidas sobre os limites de cada uma das partes.” (Quadros, Portugal: Razão e Mistério, 2020, p. 229) No que diz respeito ao contexto d’O Rei-Trovador, “Quando em 1279 D. Dinis subiu ao trono, mantinha-se sobre o Reino o interdito papal, com as igrejas fechadas, a falta de cerimónias de culto e o próprio monarca excomungado.” (Quadros, Portugal: Razão e Mistério, 2020, p. 230) Perguntamo-nos, então: que autoridade espiritual, no pleno cumprimento do seu papel, se acha no direito de impedir todo um Povo de adorar Deus e de se libertar do pecado? A instituição das Festas foi de tal maneira importante, que diz Quadros, enquanto exegeta da História de Portugal: “[Invenção das Festas] Foi um acto intencional e pesado de simbolismo, tão intencional e pesado de simbolismo que sem uma reflexão sobre o seu sentido não se nos afigura possível entender o movimento teleológico da pátria portuguesa neste período áureo e axial.” (Quadros, Portugal: Razão e Mistério, 2020, p. 229)
    ↩︎
  7. Pois, no fundo, a unidade entre a Autoridade e o Poder é esforço da razão dinâmica, dialéctica e revolucionária, e a manutenção da sua divisão é da razão estática, anti-dialéctica e reaccionária, que, no percurso da História, se têm digladiado. ↩︎
  8. Não transcendente, embora se deva associar ao transcendente, sob pena de se perder Autoridade na tradição de um Povo. Uma tradição sem Tradição está destinada a ser devorada pelo Tempo. ↩︎
  9. Não queremos, com isso, dizer que o facto determinante da dissociação entre o Poder e a Autoridade em Portugal tenha sido a Reforma, porque, numa matéria destas, a fixação de períodos históricos leva a inúteis debates que não permitem compreender o verdadeiro desiderato da perda de independência cultural e espiritual de Portugal. A Reforma, embora tenha tido impactos nocivos na pedagogia portuguesa, é, aqui, meramente elucidativa do facto de não ter havido uma Revolução, no sentido absoluto da palavra, desde a observável decadência de Portugal. ↩︎
  10. (Quadros, O Movimento do Homem, 1963, p. 298) ↩︎
  11. (Quadros, O Movimento do Homem, 1963, p. 312) ↩︎
  12. (Quadros, O Movimento do Homem, 1963, p. 314) ↩︎
  13. (Quadros, O Movimento do Homem, 1963, p. 314) ↩︎
  14. Do mesmo modo, a Cracia ou o mero Estado-Poder é propriamente anárquico. Daí que tenha surgido a feliz expressão da anarco-tirania de Sam Francis, colunista e escritor norte-americano e “paleo-conservador”, que, com a presente exposição, poderá ganhar um novo sentido. ↩︎
 Save as PDF