Em 1920, sob o título “Esquerdismo – Doença Infantil do Comunismo”, Lenine denunciava como “doença infantil” um fenómeno que grassava no Partido Comunista Alemão por via dos que, atulhados de noções ultralibertárias, desconfiavam da “ditadura das chefias” face à “ditadura das massas”. De certo modo pode hoje afirmar-se que o conservadorismo excessivamente arreigado a uma noção estática dos valores que representa, constitui uma “doença infantil” que afecta a direita portuguesa e, provavelmente, não só. O problema não está nos princípios conservadores em si, que são fundadores de uma noção particular da realidade que é cara à direita, mas apenas na forma estática como o conservadorismo típico os interpreta quando a necessidade política exige que esses valores se tornem dinâmicos.
Dinâmica pendular da história moderna
É possível, e de certo modo esclarecedor, encontrar analogia entre o postulado da física relativo à dinâmica pendular e os fenómenos sociais que têm animado a história ocidental dos últimos séculos. Segundo Newton, toda a acção provoca uma reacção em sentido contrário; em correlação, quando numa sociedade os valores da ordem atingem os limites da sustentabilidade desencadeia-se uma reacção que faz emergir os valores da liberdade. Do mesmo modo, acontece que estes, ao atingirem o excesso da sua normal amplitude, convocam uma reacção que consagra os valores da ordem.
Certos conceitos ideológicos e políticos, que pretendem a conciliação e a convivência simultânea destes dois princípios: ordem e liberdade, parecem esquecer que tal equilíbrio desafia o carácter dinâmico da realidade. O dinamismo social desenvolve-se a partir da oposição entre estes princípios, e a harmonização de ambos num caldo híbrido corresponderia a tornar estático o que, por natureza, deve ser dinâmico. Tal, faria cessar o movimento pendular de que aqui se fala e que, em todas as suas formas de manifestação, mantém a vida dos povos. Em sentido dialéctico, as sínteses resultantes da oposição entre teses e antíteses acabam por se tornarem, elas próprias, teses, suscitando novas antíteses.
O impulso progressista parece ter entrado em perda, o que é normal, dado que todo o impulso tem um limite de amplitude e duração que lhe é próprio. A fase descendente do impulso sociológico progressista, como acontece no tempo presente, parece conduzir à pulverização da consciência face à realidade, produzindo uma fragmentação conceptual sem paralelo histórico.
A actual multiplicidade das convicções e a complexidade babélica dos conceitos, associadas à valorização excessiva da diversidade, convoca a necessidade urgente de uma simplificação que torne a percepção humana coerente com a realidade e assente num dispositivo conceptual generalizado. A luta de classes ou de ideias, no seio de uma sociedade, desarticula os aspectos estruturais e corrói a coesão indispensável à vida saudável de um povo.
O conservadorismo enquanto valor estático
Entre as muitas particularidades conceptuais que dificultam a unidade política da direita uma existe que, sendo programaticamente nula, é determinante para o enfraquecimento dessa unidade. E é-o sobretudo porque induz à ideia de que direita significa retrocesso, sentido particularmente antipático às gerações mais novas, ou seja, às gerações a quem cabe, na presente circunstância, executar as mudanças conducentes à substituição do ideário progressista.
É indispensável não confundir a utopia militante e obsessiva do progressismo ideológico da esquerda com as normais modificações e movimentos de vanguarda que se vão verificando numa sociedade dinâmica. A ideia de que o progressismo se combate com conservadorismo assemelha-se às falsas terapias que agravam a doença e impedem a cura. Seja por imperativo de mobilização ou de prática política é sempre mais adequado e aliciante o convite ao avanço que ao recuo, sobretudo entre a juventude, cujo sinal distintivo está no futuro e não no passado1.
A reacção anti-conservadora que levou a esquerda ao poder é já pressentida como passado pelas franjas mais conscientes de uma geração nova, cansada de retóricas deliquescentes e utópicas. Ao considerar-se a esquerda como passado, como coisa antiga, que dizer do conservadorismo, por ela derrotado, que lhe é muito anterior, ou seja, muito mais antigo?
A tentativa de recuperar o status quo do que ficou pelo caminho, na crónica da experiência humana, constitui apenas um exercício de saudosismo. O regresso ao passado é uma impossibilidade, tanto na temporalidade como na emergência histórica e o saudosismo constitui uma debilidade que em nada poderá contribuir para a “saudade do futuro”, arma emblemática do provir. O contributo do passado dá-se por sedimentação e nunca por reafirmação.
Pensamento dinâmico e acção em conformidade
A intervenção para uma nova ordem, que reverta a longa experiência progressista, não consiste em forçar o regresso ao status quo anterior ao estabelecimento do poder da esquerda dado que os dispositivos sociológicos foram profundamente alterados e não poderiam ser reanimados num registo há muito perdido.
O revivalismo de antigos paradigmas acaba invariavelmente por produzir aberrações, como é exemplo um particular sentido de humanismo que, tentando reproduzir o ideal clássico, conduziu à versão titânica do Homem2, usurpando a Deus o lugar central de toda a realidade.
À direita de hoje compete conceber e implementar o movimento diametral que substitua a esquerda na condução das sociedades; mas para tanto terá que substituir todas as instituições que constituem o suporte político, jurídico e moral do progressismo. Não se trata de uma renovação nem de uma remodelação das estruturas existentes, mas da rotura total e completa com essas estruturas institucionais, baseadas em utopias, substituindo-as por outras que devolvam à polis a relação harmónica com a realidade.
Opiniões mais timoratas consideram que o poder ideológico e social do progressismo é hoje avassalador não havendo espaço político para implementar uma reacção que lhe seja lesiva e consequente em termos de oposição. Semelhante parecer peca principalmente por duas razões: os tempos são agora vertiginosos e as mudanças sucedem de modo inesperado; além disso, as contradições implícitas na prática progressista vão desgastando de modo paulatino a credibilidade de uma esquerda incapaz de se autocriticar e rectificar a si própria. No entanto, não é de esperar que a frente internacional progressista ceda, sem luta, perante o ataque de uma direita coerente e bem organizada; pelo contrário será mesmo de antever que a esquerda venha a usar de todos os meios, mesmo os menos democráticos, para resistir e preservar o seu modelo social, branqueando as suas acções menos democraticamente ortodoxas com a justificação de se bater pela liberdade.
Naturalmente, tal modificação não será obra de apenas uma geração. Afigura-se inútil qualquer mudança de regime, mais ou menos rápida, que não se apoie numa mudança geral de mentalidades, através de uma operação mais lenta e complexa.
Em todo o caso, convém não entender a crítica à atitude conservadora como uma concessão ideológica ao progressismo. Tal crítica não anula o facto de, no conservadorismo, existir uma série de princípios que são estruturais em termos de civilização ocidental; o problema está em que esses princípios carecem de aplicação social dinâmica em substituição da forma estática que subsiste no habitual ideário conservador.
Aliás, a insistência em atribuir às novas gerações o papel de vanguarda, na acção rectificadora que a emergência sociológica reclama, não afasta a participação, na rectaguarda, de todas as gerações vivas, inclusive as mais velhas e conservadoras. O génio juvenil está na acção enquanto o génio maduro está no pensamento.
No instante em que se alcance a harmonia entre pensamento dinâmico e acção em conformidade ter-se-á reanimado o poder da direita e inaugurado a grande transformação que as sociedades modernas exigem. E esse pensamento dinâmico, que será obrigatoriamente construtor de uma noção inédita e superlativa de realidade, necessita de um conjunto de formulações, filosóficas, éticas, estéticas, ideológicas e políticas que concebam uma nova cultura e que, à sua luz, estruturem as sociedades futuras. Sem esse concurso do pensamento toda a acção não passará de mais um subsídio à confusão generalizada que ocorre em toda a parte, preludiando o tempo escatológico de uma civilização que finda.
- Tal futuro não se compagina com a noção progressista de devir. Trata-se, sim, de afirmar um futuro para além da cronologia, coerente com a realidade que, na sua essência, é intemporal e fundada em valores perenes. ↩︎
- Cf. Carlos Dugos (20 de Janeiro de 2024), «Via heróica e via titânica», HOSTIL, em https://hostil.pt/via-heroica-e-via-titanica/. ↩︎
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