I. 1.  O mito fundador

Todo o regime ou civilização tem um mito fundador e a continuidade temporal dos mesmos afere-se segundo a permanência do culto ritualístico e da evocação desses mesmos mitos. Quer dizer, o mito, enquanto conjunto de imagens irreflectidamente evocadas pela massas, cuja essência é irracional, é a malha que liga todo um conjunto de correntes, de retóricas e de discursos, enformando um sistema1. Marxistas-leninistas, keynesianos, mounierianos (sociais-democratas portugueses), democratas cristãos, trotskistas, maoístas, libertários (de Esquerda) e libertarianos (de Direita), embora aparentem possuir um desejo de aniquilação existencial mútua (o fim dos agrupamentos de amizade e inimizade, que é o político), abraçam todos um mesmo mito e corporizam um mesmo e total sistema: o 25 de Abril, com a sua Terceira República, o seu Estado de Direito democrático, a sua democracia liberal e representativa.

Quando me refiro ao 25 de Abril, posso referir-me a dois sentidos: enquanto mito, refiro-me ao cravo, ao «E Depois do Adeus», de Paulo de Carvalho, a Salgueiro Maia, símbolos evocativos do mito; ou enquanto facto histórico, a um golpe de Estado, a um contexto ideológico próprio. 25 de Abril é também mito, e se não passasse de facto histórico, o actual sistema não teria mito em que se fundasse, tendo depois de procurar noutro lado alicerce. Se não passasse de facto, não teríamos esta grande coalizão política acima referida, da Extrema-Esquerda à Extrema-Direita. Enquanto facto que foi, o 25 de Abril foi uma tentativa de Revolução, não passando de golpe de Estado, recheado de construções ideológicas de Esquerda, pelo que a Direita estaria necessariamente de fora. Enquanto facto, o 25 de Abril é dos comunistas. O 25 de Abril, como mito, é de quem lhe presta culto, portanto, também dos propriamente liberais. Há, forçosamente, dentro da dinâmica de culto, um certo sensus fidei fidelium, expressão do catecismo católico, aqui reintegrada no fenómeno ritualístico do 25 de Abril: quer dizer, aqueles que sentem em si o cravo e procuram fazer-se «cravos de carne», aqueles que cantam «Grândola Vila Morena», de José Afonso, e viajam para um antigo Portugal «pós-revolucionário», possuem em si a comoção mítica, sendo os melhores para falar sobre o seu próprio culto. Ou seja, o sentido da fé dos fiéis, dos abrilistas, baseia o 25 de Abril como mito.

I. 2.  25 de Novembro: o substituto

Por esta razão é que a questão do 25 de Novembro causa tanto bulício: ao substituir o 25 de Abril como mito pelo 25 de Novembro, relegando o primeiro a mero facto histórico, opera-se uma verdadeira afronta, uma verdadeira heresia ou apostasia perante a religiosidade abrilista. Trata-se de uma dimensão irracional, por ser mítica, a qual não pode ser permeada por discursos lógicos, sob pena de ser totalmente desconstruída. A possibilidade de desconstrução do 25 de Abril como mito é tomada pelos seus sequazes como uma ameaça existencial, à qual respondem com o desejo de morte física do inimigo público, o que é natural no fenómeno político, como refere Carl Schmitt, no seu Conceito do Político. Citando o mesmo autor, o 25 de Abril situa-se no plano da teologia política.

 Mais, há um fenómeno curioso. Reparemos quando os abrilistas defendem o 25 de Abril como mito fundador da actual Terceira República. O paradoxo é especialmente forte quando alguns desses abrilistas são de Esquerda. A partir do momento em que o 25 de Novembro não tem importância, tudo é obra do 25 de Abril e da responsabilidade de quem o fez: Abril é tudo deste 1974, incluindo o Neoliberalismo ou pós-Liberalismo tecnocrático e globalista do século XXI. Mas muitos abrilistas dizem: «O espírito do 25 de Abril está a perder-se! Escapa-se-nos das mãos!». Mas se «nos escapa das mãos», será a decadência do 25 de Abril obra do 25 de Novembro? Quer dizer, um corpo em decadência que não tenha ainda morrido está, para todos os efeitos, morto, porque fadado a morrer. Se o 25 de Abril está morto, o 25 de Novembro está vivo. A nosso ver, estamos do lado dos abrilistas na defesa da centralidade mítica do 25 de Abril: por isso mesmo é que o 25 de Abril cheira a mofo e deve ser superado a todo o vapor. O 25 de Abril, como mito, não é Comunismo, porque o Comunismo morreu: o 25 de Abril é Pós-Liberalismo. Portanto, queremos avançar. Mas avançamos para aonde?

Do mesmo modo que procedemos a uma tentativa de superação do Liberalismo, do Comunismo e do Fascismo numa Quarta Teoria Política, quando estudamos elementos comuns às teorias políticas, procurando preservar tudo o que seja elemento tradicional, consciente ou inconscientemente presentes nelas, e extirpar tudo o que seja moderno, podemos passar pelo crivo do juízo tradicionalista a recente história revolucionária. Que bom teve o 25 de Abril? Que elementos tradicionais a manter se encontram no 25 de Abril? Para além de Abril, que elementos devemos manter e radicalizar no próprio 28 de Maio, a que tanto se opõem os abrilistas?

I. 3.  Do método superativo

Em primeiro lugar, se quisermos aplicar o método superativo ideológico ao 25 de Abril e ao 28 de Maio, não os podemos analisar como mitos. Quer dizer, o 28 de Maio, como mito fundador do Estado Novo, que na altura também se distanciou ou superou do mero facto histórico, morreu, o que não nos dá grande opção senão a de o analisar como facto histórico. Já o 25 de Abril, por também ser mito vivo, dar-nos-ia chance de o analisar como mito. Mas tomemo-los ambos como factos históricos, com um determinado contexto ideológico e social. Para além disso, não é possível adaptar o mito que fundamenta o sistema que pretendemos que se destrua e se dissolva: é precisamente atacando o mito que aceleramos a desintegração do sistema.

Em segundo lugar, por terem ambos os factos históricos o seu respectivo contexto ideológico, o método não será muito diferente do da síntese superativa das teorias políticas, se virmos o 28 de Maio como tentativa proto-terceiro-posicionista, que degenerara depois num Liberalismo com algumas características fascistas no Estado Novo, e o 25 de Abril, enquanto facto, como corporização do ímpeto comunista, também degenerado, como hoje vemos, num total Neoliberalismo e, depois da década de 90, num Pós-Liberalismo. Foram ambas tentativas de Revolução, ambas tendo procurado se arreigar num impulso iliberal, mas tendo falhado nesse desígnio fundamental.

A necessidade deste método prende-se com o facto de querermos procurar uma solução fora da Primeira Teoria Política, que é o Liberalismo, e de vermos no Comunismo e no Fascismo teorias políticas que falharam nessa missão de se tornarem soluções em pé de igualdade com o Liberalismo. Hoje, não vemos o Comunismo ou o Fascismo como derradeiras alternativas globais à Primeira Teoria Política: daí Dugin e outros teóricos da Quarta Teoria dizerem que a Segunda e a Terceira Teorias Políticas estão mortas.

A necessidade deste método prende-se com o facto de querermos procurar uma solução fora da Primeira Teoria Política, que é o Liberalismo, e de vermos no Comunismo e no Fascismo teorias políticas que falharam nessa missão de se tornarem soluções em pé de igualdade com o Liberalismo.

I. 3. A. O Liberalismo

O Liberalismo, enquanto ideia política, isto é, historicamente situada, é a manifestação, nas Idades Moderna e Contemporânea, de uma tendência anti-tradicional e dissolutiva, que muitos teóricos chamam de Modernidade, que não deve ser confundido com a própria Idade Moderna, nem com a corrente artística do Modernismo. A Modernidade é uma tendência universal no tempo e no espaço, que assola todas as Humanidades, expondo-se de formas diferentes consoante as especificidades de cada uma. O Liberalismo é, portanto, o fenómeno ocidental da Modernidade, como tendência anti-tradicional especificamente europeia.

I. 3. B. O Comunismo

O Comunismo, embora tendo características positivas e aproveitáveis, tem por elemento primário «a negação de todos os valores de ordem espiritual e transcendente: a filosofia e a sociologia do materialismo histórico são simples expressões de uma negação destas […]»2, porque o objectivo do comunismo «é precisamente a eliminação, no homem, de tudo o que para ele possa constituir um interesse separado do colectivo»3, mas um «colectivo» que, em verdade, é «individualismo», na acepção guénoniana do termo, como manifestação de uma tendência negadora de qualquer princípio supra-individual e espiritual, ou seja, como fenómeno da Modernidade. Evola cita Zinoviev: «em todo o intelectual vejo um inimigo do poder soviético»4. Trata-se do nivelamento absoluto de todos, «progredindo» rumo a uma sociedade sem classe, sem sexo, sem raça. Este absoluto nivelamento também surge no ideário liberal, mas tomando como pressuposto o da liberdade individual e subjectiva, ao contrário do Comunismo, que deverá assentar numa liberdade de e para a classe e, portanto, objectiva. Todavia, com a dissolução das classes, essa liberdade deixa de ter forma e, portanto, deixa de existir concretamente na sociedade do Comunismo pleno. No Liberalismo, a possibilidade de «liberdade de forma», na expressão do transsexual trans-humanista Martine Rothblatt, existe no grande mercado global de agora, enquanto na Segunda Teoria Política ela só existe e terá de existir no Comunismo pleno. A classe, como sujeito político do Comunismo, tal como, de certo modo, a Nação no Fascismo, tem uma definição universal. Isto é, há uma classe universal, e não internacional, no sentido próprio do termo, e oprimida que se digladia com uma outra exploradora, o que implica uma tábua de valores universal, uma única noção de Homem, igual em todo o tempo, igual em todo o lugar.

I. 3. C. O Fascismo

Sobre a noção precipitadamente universal de Nação do Fascismo, há que ter em conta o seguinte. O motor da História Universal, para o Comunismo, é a luta de classes, porque esse é o seu sujeito político. No Fascismo, sendo o sujeito político a Nação, o móbil da História é a luta entre Nações, em que no final triunfará a derradeira Nação, Raça ou Estado, só triunfando, porque se aproximará mais perfeitamente do ideal universal de Nação, por duas razões: porque venceu e porque imporá a todos o seu próprio particularismo. Um dos grandes problemas do Fascismo é a sua tendência para o nacionalismo ortodoxo, ou aquilo a que Rolão Preto se referia como «nacionalismo burguês», apesar de ele se enquadrar numa das ideologias da Terceira Teoria Política, o nacional-sindicalismo, de tendência algo rara. Aqui, encontramos a base axiológica para o racismo: a haver hierarquia de raças, é necessário que haja uma mesma tábua de valores, uma mesma definição de Homem, «igual em todo o tempo, igual em todo o lugar». Também não devemos olvidar a sua tendência massificadora do Povo, que observamos também no Comunismo classista e no Liberalismo do fetichismo consumista.

I. 3. D. Uma tentativa de síntese

Mas podemos ver tanto no Comunismo como também no Fascismo atributos e instrumentos teóricos muito positivos, que, aliás, se complementam. Por exemplo, o ideal aristocrático do Fascismo necessita do absoluto anti-Capitalismo comunista. Se a sociedade plutocrática é irremediavelmente anti-aristocrática, cuja definição de mérito não é a virtude, mas a riqueza, e anti-patriótica, uma sociedade revolucionária necessitaria de abolir as causas da oligarquia, nomeadamente a noção de propriedade e a concentração privada de renda e de riqueza, num certo «comunismo aristocrático», na esteira de Franco Freda5. O ideal de classe do Comunismo necessita da visão orgânica e ordeira fascista, na medida em que a representação popular não deve ser feita segundo ideologias, característica dos sistemas burgueses, mas segundo sectores de actividade, todos unidos em função de um ideal eterno e total: a Nação. Aí se encontra o valor do Nacional-Bolchevismo, que não deve ser tomado como último reduto da solução anti-liberal, mas tão somente como porta de entrada para uma nova síntese e uma nova teoria política. Para tal, é necessário retirar todo e qualquer elemento moderno, e preservar o que há de tradicional em ambas as teorias, tarefa não permitida pela pertinência deste texto.

CONTINUA NA PARTE II – 28 de Maio passando no crivo.

  1. Para tal, baseamo-nos na noção de mito de Mircea Eliade, como modelo fornecido «para o comportamento humano», conferindo «significado e valor à existência» (Eliade, 1986).  Embora «realidade cultural extremamente complexa», Eliade tenta uma definição: «o mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos “começos”» (Eliade, 1986). Este começo ou tempo primordial pode ser significado como esse tempo de «retorno à pureza» que corporiza o 25 de Abril. A operatividade política do mito foi desenvolvida conceptualmente por Georges Sorel, na sua ideia de Grève Général (Sorel, 1930). ↩︎
  2. Evola, 1989. ↩︎
  3. Evola, 1989. ↩︎
  4. Evola, 1989. ↩︎
  5. Freda, 2021. ↩︎
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